Catarina Rodrigues
Psicóloga Clínica e
Psicoterapeuta
In Revista Pais & Filhos, Fevereiro de 2013
«- Mamã, vai haver uma festa de
carnaval na minha escola e a professora disse para irmos mascarados. Eu estive
a pensar e queria mascarar-me de fada!
E dito isto, Leonor correu pela casa
toda, dançando e cantando como se fosse uma fada. Pelo menos, a fada que tinha
na sua imaginação. Ondulava a mão direita pelo ar como se empunhasse uma
varinha de condão imaginária e dava gritinhos de alegria, apontando para um e
outro lado, provavelmente lançando feitiços encantados. A mãe sorriu, ao ver a
filha tão contente e imaginou-a com um vestidinho branco e umas asinhas presas
às costas. Sem dúvida, ficaria uma linda fada!
Enquanto a filha dançava e
cantarolava, a mãe ficou a pensar porque ficava a filha tão contente com a
possibilidade de se mascarar. Sem se dar conta, começou a pensar na sua
infância. Não queria dizer que não tivesse brincado ao Carnaval mais tarde, já
adulta, mas existiam datas que tinham o
sabor diferente da infância e que ficaram registadas dentro de si, à medida que
crescia, como momentos de uma magia que só a infância - com a sua credulidade,
inocência e fantasia - pode ter.
Deu por si a sorrir
nostalgicamente recordando um fatinho de pantera cor-de-rosa que o pai lhe havia
trazido, era ainda ela pequenina, e de como ele tinha tido um significado tão
especial para ela. Lembrou-se também de se ter mascarado de dama antiga e de homem
barrigudo (em que tinha colocado uma imensa almofada na barriga, que lhe estava
sempre a cair com as correrias!). Já não se lembrava disso há tanto tempo…
Incrível, ainda podia sentir dentro de si o quanto se tinha sentido linda ou
divertida com tais vestimentas! E a algazarra que tinha sido com os amigos!
Todos mascarados, fingindo que eram este ou aquele personagem! Corriam pela rua
como loucos, tocando às campainhas e exibindo os seus fatos. Fantástico! Por um
dia, eram as personagens que
alimentavam diariamente a sua fantasia!
Pensou há quanto tempo não se
mascarava. No carnaval, esta possibilidade de brincar ao faz de conta é regra
para pequenos e graúdos, demonstrando bem como o brincar é importante,
possibilitando sair das regras do quotidiano e agir de forma espontânea e
divertida.
Ficou a pensar no que tinha de
especial a possibilidade de vestir uma pele que não a nossa? Olhou para a
filha/fada e compreendeu que vestir o disfarce tornava a fantasia materializada
e exposta ao mundo real. Saía do mundo privado para o foro social/relacional. E
vestir o disfarce era qualitativamente diferente de brincar com uma boneca
fada. Naquele momento, a filha era
uma fada. E essa fantasia era socialmente aceite. Vestida de fada, a filha
podia agir como uma fada e ser diferente de si mesma. O disfarce
permitia-lhe ir para além de si mesma e
das suas características!»
A fantasia faz parte integrante da vida mental
Brincar faz parte da natureza
animal, mas brincar ao faz de conta é algo específico do ser humano. Desde
muito cedo no nosso desenvolvimento que brincamos ao faz de conta, mediados ou
não pelos brinquedos. Com efeito, podemos manipular brinquedos – animais,
pessoas, coisas - e através deles viver, na nossa imaginação, grandes
aventuras. Mas, também podemos imaginarmo-nos como determinado personagem ou
animal e utilizar o nosso corpo para o imitar. E podemos, ainda,
disfarçarmo-nos de determinado personagem ou animal!
Como estamos a chegar ao
Carnaval, vamos pensar no papel do disfarce.
O disfarce como que materializa o
desejo de ser um certo personagem, de nos “fantasiarmos”, ou seja, de podermos nós
mesmos materializar a nossa fantasia e brincar com ela. Fica-se, então, num
mundo intermédio, que já não é só a fantasia privada nem é o mundo real. A
fantasia entra na realidade, sem que,
no entanto, se confunda com esta. Estamos apenas a fingir e a representar um
papel, mas por momentos é como se fossemos esse personagem, exibindo as suas
características e comportamentos.
A escolha do disfarce é relevante
para a criança. Normalmente, representa um super-herói da sua história
preferida, mas pode ser também alguém ou algum personagem com que se identifica
e que valoriza ou um personagem que lhe permite extravasar afectos negativos e
angustiantes em segurança (como no caso da bruxa ou do fantasma).
Através da fantasia e brincando
ao faz de conta, a criança supera as suas limitações – pode ser a linda
princesa cobiçada, e não a menina tímida que pouco fala com os rapazes da sua
escola; pode ser o super-homem forte e corajoso, e não o menino gozado pelos
colegas. Ou seja, pode colocar no disfarce como que um alter-ego, que lhe
permite expor um outro lado de si mesma inibido ou reprimido. O que pode ter
repercussões na relação com os outros. Efectivamente, sentindo-se mais
à-vontade através do faz-de-conta, a criança pode experimentar comportamentos
diferentes dos habituais e ganhar mais confiança e segurança na relação com os
outros.
O disfarce permite, ainda, manifestar
comportamentos com uma intensidade que normalmente levariam a um ralhete dos
pais/professores. Ou seja, o disfarce permite sair dos “limites” próprios
(entenda-se das características e das competências do próprio) e dos limites
impostos pela realidade, o que ajuda a criança a auto-regular-se e a aprender
os seus próprios limites.
Em todos os casos, o disfarce
representa o personagem que melhor traduz a vontade de ser crescido, os
impulsos amorosos ou agressivos, de cooperação ou de competição, de valentia ou
de medo, permitindo à criança, pela identificação ao personagem, dar largas a
comportamentos que suscitam curiosidade e experimentar, na segurança do faz de
conta, as complexidades relacionais que vai observando e vivendo com adultos e
outras crianças.
Compreendemos, pois, como o brincar
e o imaginar são fundamentais para o desenvolvimento humano. Afinal, quando
somos pequeninos o brincar permite-nos experimentar o mundo em segurança! Ser
criança é ser pequenino, é possuir competências em maturação e estar ainda em
desenvolvimento… e o mundo, sobretudo o mundo relacional em que a criança está
inserida, é complexo. Brincando, imaginando, disfarçando-se, a criança pode
sair da sua realidade. Pode ser em simultâneo ela própria e os pais, por
exemplo, e imitar/representar os comportamentos destes que a angustiam,
entristecem ou alegram e os seus próprios. Pode ensaiar comportamentos de
separação, de valentia, de agressividade, de amor, de ódio, de extravasamento
total… pode tudo. Porque no final da brincadeira, volta a ser ela própria… mas,
provavelmente, não a mesma de antes da brincadeira. Antes um si próprio
“acrescentado” com as ideias, as emoções, as sensações, as aprendizagens
internas que a brincadeira lhe trouxe.
Da minha própria experiência, as
crianças pedem sempre o disfarce que lhes faz sentido. Quando o adulto respeita
o pedido da criança e a deixa viver a sua fantasia em pleno, esta vem responder
a necessidades íntimas do desenvolvimento daquela criança. O que quero dizer, é
que as brincadeiras e os disfarces não são escolhidos por um acaso ou só porque
está na moda, mas porque, de alguma forma, permitem viver emoções que são
importantes à criança… Efectivamente, nenhuma criança brinca só por brincar! A
criança escolhe a brincadeira/o disfarce que melhor vem responder às suas
necessidades internas e às necessidades que vão surgindo no seu contexto
afectivo, social, cognitivo, à medida que vai crescendo. Isso pode não ser
óbvio para o adulto que a observa. Nem tem de o ser. É o maravilhoso do
simbólico: em grande parte, permanece oculto e no domínio da privacidade dos
sonhos, necessidades e desejos infantis.
É importante mascarar?
«- Rodrigo, já te disse que não
faz sentido isso de te mascares…
- Mas, mãe, todos os meus colegas
se vão mascarar lá na escola…
- Está bem, mas nós não temos
essa possibilidade, já falámos sobre isso. Além disse, sabes que eu e o teu pai
não concordamos com isso. É um gasto de dinheiro estúpido. Se tu quiseres, a
mãe pinta-te uns bigodes ou o que tu quiseres…
-Não, deixa estar, o que eu
gostava mesmo era ir de Zorro… Com uma espada…
-Não dá, filho. Olha, a mãe e o
pai também nunca se mascararam e não foram menos felizes por causa disso. Tu
sabes que na nossa altura se começava a trabalhar cedo, e não havia tempo para
brincadeiras. Tu já tens muita sorte, Rodrigo.
Rodrigo virou as costas e encaminhou-se
para o seu quarto. Sentia-se infeliz e incompreendido, mas não percebia bem
porquê. Queria tanto mascarar-se de Zorro… Era o seu personagem preferido.
Adorava os desenhos animados. Levantava-se bem cedo para os ver. Não tinha
nenhum boneco Zorro, porque os pais não achavam importante ter-se brinquedos
que não fossem didácticos. Achavam mais importante comprar os livros e a roupa
para a escola. O Rodrigo percebia, em parte. Sabia que tinham pouco dinheiro e
que não se podia gastar à toa. Mas queria tanto, tanto o Zorro. Felizmente,
tinha uma coisa que não custava dinheiro nenhum aos pais: a sua imaginação. E
imaginava-se de Zorro. Imaginava-se vestido de Zorro, com a espada e tudo! Às
vezes, no escuro do seu quarto, enquanto brincava imaginando, dizia a si mesmo
que quando fosse grande havia de ter um disfarce de Zorro e um boneco do Zorro
e os filmes do Zorro… e, se tivesse um filho, nunca lhe ia dizer que não era
importante mascarar-se. Ia deixar o filho mascarar-se e ter brinquedos, porque
só uma criança sabe como os brinquedos e os disfarces são importantes. E
pensava que talvez os seus pais, por não o compreenderem, nunca tivessem sido
verdadeiramente crianças…»
Por vezes, o adulto pode sentir
dificuldade em não se “intrometer” na brincadeira da criança e procurar
influenciá-la de alguma forma, escolhendo disfarces ou incentivando a que a
brincadeira vá num ou noutro sentido. É quase inevitável, porque dentro de si
permanece esse apelo maravilhoso ao brincar como quando era criança! Ou seja, o
seu lado infantil vem ao de cima e, sem se dar conta, começa a brincar! A criança
fará o filtro e geralmente diz: «Não, mãe/pai, não é nada disso. É assim…» e
recoloca a brincadeira de acordo com a sua imaginação, e não a dos pais.
Outros pais têm dificuldades em
brincar e podem ter dificuldade em compreender e aceitar as brincadeiras dos
filhos e mesmo compreender a necessidade de brincar. Provavelmente, terão sido
crianças impedidas de brincar ou cuja dureza da sua realidade lhes
impossibilitou imaginar cenários alternativos e fantasiosos. Há situações de
vida em que é difícil imaginar e brincar…
Mas, a fantasia faz parte
integrante da vida mental do ser humano.
Quando a criança diz quero
mascarar-me de fada, Zorro, homem-aranha, super-homem, piloto do Faísca Macqueen,
etc., está a identificar-se a um herói dos seus desenhos animados ou história
preferidos. Está a identificar-se aos valores, às características e
comportamentos desse personagem. Quando veste o disfarce desse personagem e age
como ele, sente-se como esse personagem. E a sua imaginação é alavancada e
potenciada com a brincadeira… e, ainda que invisível aos olhos de adultos que
reprimiram a criança que há em si, em redor da criança que brinca, surge todo
um incrível mundo de fantasia. É esse o poder da imaginação. De nos transformar
e de transformar o meio e as pessoas em nosso redor de acordo com a nossa
fantasia.
Os desenhos animados exploram
muitas vezes este fenómeno. Um personagem está a brincar e à sua volta tudo se
vai transformando, aparecendo o cenário ideal para as aventuras imaginadas. É
esse o papel da imaginação – criar imagens, cenários, personagens que não
existem fisicamente, apenas na cabeça da criança, e que transformam o meio e as
pessoas em redor em cenários e personagens da fantasia da mente da criança.
A este propósito, não sei se já
vos aconteceu regressar a um sítio onde brincaram quando eram crianças e já não
iam há muito tempo? Por exemplo, a escola primária onde andaram e o jardim onde
iam brincar com os amigos e onde tantas aventuras foram imaginadas. Verificarão
que é espantoso como esse sítio parece diferente daquele que guardam na vossa
mente. Não é só o facto de parecer mais pequeno; é também o facto de parecer
menos brilhante e vivo. É na vossa recordação que esse sítio aparece com a
coloração viva e alegre, misteriosa e aventureira da vossa infância, de acordo
com as brincadeiras que ali fizeram. No fundo, o sítio consiste apenas num
cenário que a imaginação, através do brincar, anima e traz colorido! Quando
vestimos um disfarce é igual. O disfarce é apenas o pano de fundo. A imaginação
da criança é que lhe traz vida e realismo.
Quando
o vosso filho vos pedir para se mascarar, lembrem-se que o disfarce, tal como o
brinquedo, permite à criança sair do mundo estritamente perceptivo, das normas
e regras sociais, dos seus limites, características e circunstâncias. O
disfarce permite brincar como se se estivesse a sonhar acordado. E, no meu
entendimento, tem sido essa capacidade humana que ter potenciado a nossa
incrível evolução. E, agora, digam-me, quantos de vós não guardam na vossa
recordação imagens, sabores, sensações vividas quando brincavam? Lembram-se de
como eram capazes de transformar o mundo no local da vossa fantasia e de como
isso vos dava um prazer incrível? E de como, depois, da brincadeira, se sentiam
satisfeitos e felizes? Por isso, vos desejo, a vós e aos vossos filhos, BOM
CARNAVAL!