Revista Pais & Filhos (Abril de 2013)
Catarina Rodrigues
Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta
Da
dependência absoluta à conquista do mundo. O primeiro ano de vida do bebé é um
ano de descobertas constantes… e emoções fortes.
Aproxima-se
o primeiro aniversário da minha filha! Uma data que assinalo com um texto
inspirado na nossa vivência em conjunto e naquilo que ela me foi mostrando
sobre a vida e o desenvolvimento dos bebés. Não se trata, contudo, de um diário
de mãe. Não pessoalizarei o artigo, mas as reflexões nele contidas derivam,
essencialmente, da minha experiência como mãe e, também, daquilo que, como
psicoterapeuta, vou conhecendo dos bebés e dos pais internos dos meus
pacientes.
Desenvolvo-me porque sinto o vosso
amor e respeito por mim como pessoa
A
vida dos bebés transforma-se de uma forma incrível ao longo do primeiro ano de
vida. Em 12 meses, o bebé gradualmente vai passando de um estado sobretudo
virado para o interior, dominado pela maturação do biológico, onde a regulação
dos ritmos é o principal, para um estado onde a curiosidade pelo humano e pelo
exterior é cada vez mais explícita e motiva o palrar e o andar!
Em
termos psicológicos, vai começando a delinear a sua personalidade, na medida em
que se vai ajustando e adaptando às modalidades relacionais dos pais/cuidadores.
Como pessoa que é, o bebé é essencialmente relacional e é na relação com o
outro e com a cultura envolvente que vai moldando e adaptando a sua
personalidade. Ao mesmo tempo, em termos emocionais, vai também recolhendo
informação sobre a confiabilidade do cuidado prestado pelas figuras parentais e
percebendo se a estas se pode ligar com segurança ou não.
Acredito
que um bebé tem um potencial de desenvolvimento emocional saudável enorme. Ao
nascer, espera sobretudo um meio acolhedor da sua espontaneidade e está
disponível para aprender tudo o que é humano pelo humano, nomeadamente através das figuras parentais. Ou seja, desde
o nascimento, o bebé está disponível para uma relação com outros seres humanos
e é deles que espera cuidado, proteção e ensinamento. Sentindo que a resposta
do outro lhe é contingente, isto é, é contígua e empática à necessidade
manifestada, o repertório expande e vai-se complexificando.
De
modo contrário, a espontaneidade vai diminuindo e vão surgindo comportamentos
defensivos e/ou psicopatológicos, que resultam do esforço do sujeito em se
adaptar ao modelo relacional que lhe é oferecido por aqueles de quem depende.
Podemos, por isso, pensar a psicopatologia como a melhor adaptação que aquele
sujeito pôde fazer às condições emocionais e psicológicas que o meio lhe
ofereceu.
Contudo,
acredito que, consciente ou não, permanece um núcleo saudável e espontâneo à
espera da resposta humana que lhe permita avançar no caminho do seu verdadeiro
“Eu”. Se assim não fosse, a profissão de psicoterapeuta não existiria.
O
que pretendo dizer é que os bebés não são tábuas rasas nem aceitam todo o tipo
de cuidado que lhes é prestado, embora, dada a sua imaturidade e dependência,
não tenham outra solução senão moldar-se. Na verdade, penso que os bebés estão
à espera de um tipo de cuidado por parte das pessoas que tratam deles. Um
cuidado fundado no amor, no respeito pela individualidade e pela dependência, na
tolerância à frustração, no desejo de ver crescer, na tolerância à colocação
das necessidades próprias em segundo lugar, em prol do bebé.
Ao
longo do primeiro ano, o impulso para o desenvolvimento é enorme. Contudo, e
como pretendo salientar, esse impulso para o desenvolvimento só se efetiva na
interação com o humano. Pois só existe curiosidade pelo exterior porque o bebé
sentiu, e sente efetivamente, o respeito, o amor, o interesse e o cuidado por
parte da figura parental. Ou seja, só me interesso pelos outros porque antes
alguém se interessou por mim e me mostrou que os outros são, por isso, dignos
do meu interesse. Sem este interesse primordial e constante, o bebé fica cativo
de uma necessidade insatisfeita e, embora vá crescendo fisicamente,
emocionalmente permanece com esta necessidade em suspenso.
O primeiro trimestre: “Estar contigo,
mãe, faz-me sentir uno”
Quando
o bebé nasce, e existindo disponibilidade emocional materna, a dependência face
à mãe é absoluta, e isto tanto em termos físicos como emocionais. Ao longo do
primeiro trimestre, e sobretudo no primeiro mês, é como se existisse, para o
bebé, uma necessidade de continuidade da sua vivência no útero materno. A mãe é
a sua referência, a pessoa que conhece e a quem quer por perto para saber que
está em segurança. Quer sentir, cheirar, ouvir a mãe e saber que esta acode
sempre que precisa.
A
meu ver, deixar o recém-nascido sem resposta (deixá-lo a chorar) é deixá-lo com
um sentimento de desamparo e de estar perdido. O amor não tem regras definidas
e é da ordem da resposta concreta e quando pedida. Foi essa a sua experiência no
útero e para que possa esperar, primeiro precisa amadurecer o seu sistema
fisiológico e ganhar confiança na nova
relação que vai estabelecer com as figuras parentais.
Penso
que esta disponibilidade imediata da mãe ajuda o bebé a sentir-se uno na sua
experiência de si (não se sente desamparado e sem resposta) e na sua
experiência de confiança com a sua mãe (ela leva os seus pedidos a sério e
compreende que é pequenino e que precisa dela quase sempre para se sentir
tranquilo).
São meses de grande adaptação para a mãe e de
conhecimento mútuo. Desejavelmente, a mãe vai reconhecendo o seu bebé como
único e como pessoa. Reconhecer que é uma pessoa é reconhecer que o seu bebé tem
necessidades únicas e que está atento à relação que lhe é oferecida e que
procura exprimir, com as competências que possui, as suas necessidades de
atenção, carinho, aconchego, mimo, respeito, comida e higiene. Estas serão
necessidades universais; o modo como o bebé necessita que lhe respondam é que é
único.
À medida que se vai consolidando a confiança
na boa resposta parental, e acompanhando a maturação fisiológica, o desejo de
interação com os pais torna-se cada vez mais explícito.
A clareza da comunicação/intenção do bebé
encontra-se, pois, correlacionada com o modo contingente como se sente
entendido e respondido. Na ausência da resposta parental suficientemente boa,
fica a angústia e a necessidade paira dentro do próprio em bruto (sem tradução
verbal e emocional). A boa resposta parental traz a clarificação das necessidades
apresentadas pelo bebé e isso contribui para que este se sinta competente na
comunicação das suas necessidades.
Ou seja, por um lado, quanto mais o bebé
sente a resposta parental correspondente às suas necessidades, mais estas se
tornam claras: a boa resposta parental vai tornando as necessidades do bebé
melhor definidas para este, porque a mãe e o pai conferem o significado correto
– conferem palavra e dão o cuidado que o fazem sentir-se bem. Por outro, o
facto de se sentir entendido, torna o bebé mais confiante na sua capacidade de
comunicar o que necessita (“se me sinto melhor, é porque os meus pais o
entenderam o que se passa comigo e eu consegui explicar-lhes”) e confiante na
relação com os seus pais.
O mesmo sucede com os pais. Também vão
ganhando confiança na sua competência, à medida que sentem que conseguem
entender e ajudar o seu filho a crescer bem. É este sentimento recíproco de
confiança e de competência em pais e bebé que funda, a meu ver, o 1º trimestre…
e que delimita, no bebé, a linha entre a patologia e a saúde mental.
O segundo trimestre: “Já começo a
mostrar a minha intenção!”
Depois… depois vem a interação clara e o
prazer de aprender sobre as relações humanas e sobre o mundo no brincar entre
pais e bebé! Efetivamente, creio que o 2º trimestre inaugura o interesse pelo
mundo e pela interação com os pais. O bebé vai percebendo que os pais lhe
procuram transmitir coisas de si mesmo e do mundo que o rodeia. Sente que são
de confiança e tem curiosidade sobre o que fazem e dizem. A repetição de
algumas brincadeiras e o estabelecimento de rituais por parte dos pais ajudam o
bebé a estabelecer relações de causa-efeito e a associar palavras/sons a
imagens ou comportamentos.
Gradualmente, o bebé dirige-se aos pais
intencionalmente (falamos em proto-intencionalidade nesta fase) em busca de
significado sobre o que o rodeia e sobre o seu estado interno. Por exemplo, o
bebé olha para os pais quando estes enunciam um objeto ou animal ou pessoa. A
sua atenção, mesmo que breve, é incisiva… e o conhecimento vai-se fazendo. Um
exemplo para os estados internos, é quando o bebé tem fome ou quer mimo e olha
e chora de uma certa forma para a mãe! Ou faz beicinho se o deixam no berço e
ele quer colo!
Gostava aqui de salientar este aspeto: os
bebés procuram e exprimem o que precisam e dirigem-se a quem têm tido a
experiência da boa resposta às suas necessidades. Os bebés são pessoas, em
formação, é certo, mas pessoas. Reconhecido como pessoa, o bebé pode, então,
reconhecer-se como pessoa!
A dada altura o bebé olha para si mesmo com interesse e sorri! O seu mundo
deixou de estar concentrado na mãe e no pai. E pode sorrir-se porque se sente
amado e narcisado. O olhar apaixonado da mãe e do pai sobre si dá-lhe a certeza
de que é alguém, de que é amado e reconhecido.
Penso que será aqui que o bebé começa a
desenvolver a sua individualidade. Note-se que não considero que exista um
período inicial de confusão entre o bebé e sua mãe. Penso que o bebé sabe,
desde que nasce, sem palavras e sem pensamentos verbais (talvez por imagens e sensações) que é um ser
separado da sua mãe. Sempre o foi desde que estava no ventre materno. Contudo,
à medida que se vai sentindo olhado e significado (reconhecido), associado ao
amadurecimento do seu cérebro, o bebé começa a perceber que existe como alguém
que é objeto de um amor inigualável
por parte dos sujeitos parentais. Funda-se o amor próprio e um novo
impulso para o desenvolvimento acontece!
O terceiro e quarto trimestres: “Olá
mundo!”
Conquistando mais força e equilíbrio no seu corpo, e mais confiante em si
mesmo, o bebé percebe que consegue fazer coisas incríveis e que já não depende
tanto dos pais para alcançar as coisas que acha interessantes. Os próprios pais
estimulam esta conquista, afirmando ao bebé que consegue fazer algo e continuando
a chamar a sua atenção para as descobertas que ainda tem a fazer sobre o meio
que o rodeia e sobre si mesmo. E para as que depende, primeiro o bebé olha com
intensidade e palra, depois aponta e usa os pais como seu prolongamento para
chegar a elas, em seguida gatinha e, por fim, anda! Tudo acompanhado por um
esforço de nomear coisas e pessoas, em que em primeiro lugar pode vir a palavra
“bebé”!
Esta conquista do mundo é possível porque o bebé vai adquirindo pela
experiência concreta a certeza de que pode confiar que os seus pais estão ali
por perto, lhe apresentam o mundo e lhe dizem quais as coisas que podem ser
perigosas para ele, assegurando que nada de mal lhe possa acontecer. O bebé
sente que pode experimentar o mundo em segurança… E de tal forma assim o é que
geralmente olha para os pais em busca de confirmação quando se aproxima ou pega
num objeto que os pais já lhe haviam dito que não podia mexer porque se pode
magoar ou quando pretende que lhe expliquem como funciona determinado objeto.
Como mãe, diria que estes seis meses são
de puro deslumbre para os pais pela cadência da conquista de novas competências
do bebé! Parece que a todo o instante, o bebé nos mostra algo novo, fazendo-nos
sentir que é o bebé mais esperto e inteligente e capaz do mundo! E como esse
olhar de deslumbre e de orgulho é fundamental para a autoestima do bebé… Como o
brilho no olhar dos pais, o riso que emitem, as palminhas que batem, o fazem
sentir especial e que fez algo muito interessante! O que o estimula a
continuar!
Penso que isto sucede, porque ao desejo
epistemofílico (de conhecimento) do bebé corresponde uma atitude pedagógica dos
pais. Quando falo em atitude pedagógica dos pais, estou a referir-me ao impulso
natural dos pais em apresentar o mundo (natural e humano) ao seu bebé, por um
lado, e em “seguir” a curiosidade do bebé no seu processo de conhecimento, por
outro. Efetivamente, penso que após uma primeira fase em que é o adulto que
“comanda” o processo de conhecimento (nos trimestres anteriores), nestes
trimestres é o bebé que comanda, sendo cada vez mais explícito sobre as coisa
que quer ver, mexer e experimentar.
O papel do adulto é, pois, a meu ver,
“seguir” o bebé, empatizando com o seu desejo, dando-lhe espaço à repetição que
precisa para assimilar e acomodar os novos conhecimentos. Mas o seu papel não
se esgota aqui: pode e deve deslumbrar o seu bebé com mais uma informação sobre
o objeto que ele está a explorar… estimulando o seu desejo de explorar. Para
depois se deslumbrar com o lado de investigador minucioso que o seu bebé tem!
Trata-se, pois, de conceber o adulto como
o veículo privilegiado da aprendizagem do bebé sobre o mundo que será o seu à
medida que cresce (e que os pais envelhecem). Trata-se de conceber o adulto
como o transmissor de valores e de ensinamentos que vão ajudar o futuro adulto,
agora bebé, a gerir o mundo relacional e natural. Por isso, vejo o respeito
pelo bebé como a base de toda a interação com este.
E estou, ainda, a referir-me ao prazer que
todos têm nesta interação! É a alegria, o espanto e o estímulo genuínos
demonstrados pelos pais na sequência de um comportamento espontâneo do bebé que
gera, neste último, o prazer de o repetir e de mostrar o que consegue fazer aos
pais. Claro que isso às vezes é cansativo para os pais. Sem dúvida. Apanhar
vezes sem conta objetos do chão, enunciar objetos inúmeras vezes à medida que o
bebé aponta, andar curvado para ajudar o bebé a andar sempre que lhe apetece,
repetir uma certa brincadeira ao vermos o olhar brilhante do bebé e um riso a
desenhar-se nos seus lábios quando passa por um sítio onde costumamos fazer
essa brincadeira com ele, pode cansar. Mas é assim que aprendemos. Todos nós.
Pela repetição e pelo prazer que sentimos pelo desafio intelectual e motor, mas
sobretudo pelo sentimento de crescente intimidade com os nossos pais!
Pode não ser fácil, é certo, mas julgo que
é tanto mais possível quanto mais nos permitimos a ver o mundo com os olhos do
nosso bebé interno e/ou que nos permitimos ser “invadidos” pelo olhar do nosso
bebé. Ou seja, a olharmos para as pessoas e objetos como se fosse a primeira
vez e darmo-nos conta do que podem fazer, da forma, do brilho, da textura, do
toque de tudo o que nos rodeia… e de como isso é deslumbrante!
P.S. Dedico este texto à
minha filha, desejando que o possa ler daqui a uns anos e nele reconhecer o
“sentir” da nossa vivência comum ao longo deste primeiro ano da nossa vida como
família.
Poema da autora
Quando sorriste para ti…
Quando o bebé começa a perceber que existe
como alguém e que é objeto de um amor inigualável por parte dos pais, um novo
impulso para o desenvolvimento acontece! Ilustro esta questão através de uma
espécie de poema que escrevi aos cinco meses da minha filha.
Bebé
“Mãe/Pai,
O que vejo quando olho para os teus olhos?
Quem vejo refletido no teu olhar?
O que sinto quando me olhas?
O que sinto que tu sentes quando olhas
para mim?
Saberás, porventura, da importância do teu
olhar para mim?»
Resposta da mãe
“Sim, minha filha, sei-o. Quando olho para ti e vejo a atenção que
colocas em mim e no meu olhar, compreendo logo o quanto sou importante para ti.
Compreendo o quanto o teu florescimento depende do meu amor, da minha alegria,
do meu orgulho em todos os teus pequeninos gestos. E à medida que cresces,
apercebo-me o quanto a minha maneira de ser, contigo e com os outros,
influencia a formação da tua personalidade. Sabes quando me apercebi
claramente disso? No dia em que deixaste de olhar e rir para a minha imagem
refletida no espelho e passaste a olhar e a rir para ti mesma refletida no
espelho. Para ti - que sempre tinhas estado ali, ao meu lado, no meu colo, mas
que ainda não te tinhas apercebido. Só olhavas para mim! E de repente, sorriste
para ti da mesma maneira que eu costumo sorrir para ti. Reconhecias-te… porque
havias sido reconhecida por mim. Vias-te agora, porque havias sido
anteriormente vista por mim.”