14/01/2013

Vinculação e Adoecer Infantil


Catarina Rodrigues
Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta



Provavelmente, já se deparou com uma situação em que sentiu que o aparecimento de uma doença sem expressão orgânica na criança tinha um valor comunicacional. Provavelmente, também já o sentiu em si mesmo.
Neste artigo debruço-me sobre a dinâmica relacional subjacente ao adoecer psicossomático infantil, considerando-o a base do adoecer psicossomático do adulto. Com adoecer psicossomático infantil, estou a pensar nas perturbações do sono; alimentares; digestivas e gástricas; respiratórias; problemas de pele, que não têm base orgânica.
Experiências pessoais, a observação de bebés, a clínica infantil e mesmo a clínica do adulto fizeram-me pensar sobre a influência de aspectos relacionais sobre as doenças físicas, entendendo-as como vias de comunicação, corporal, sobre esses mesmos aspectos. Ou seja, aquilo que penso é que, na doença psicossomática, os comportamentos do bebé e da criança pequena traduzem o seu psiquismo imaturo. O corpo “fala” aquilo que a mente não consegue elaborar e integrar. Ou seja, o corpo “fala” aquilo que não se torna pensamento.
Provavelmente, no adulto também a doença psicossomática continua a evidenciar esta imaturidade e dificuldade em elaborar e pensar emoções e afectos, que continuam a encontrar no corpo a sua via de comunicação e expressão. Emoções que, desde a infância, ficaram ser contenção e elaboração mental por parte de um adulto com um psiquismo mais maduro, capaz de transformar tais experiências em palavras pensáveis e transformáveis e que se mantiveram, portanto, nesse ponto de esperança de compreensão e de elaboração. Ficaram, pois, com o seu desenvolvimento em suspenso, como diria António Coimbra de Matos. É essa esperança que encontramos nas pessoas que nos procuram em terapia, e à qual devemos saber responder sensível e complementarmente.
Na infância, o facto de termos um cérebro em desenvolvimento, de ainda não falarmos e de estarmos mais dependentes do meio, leva a que a comunicação se processe essencialmente pelo corpo… até que a linguagem se institui como meio de comunicação privilegiado.
Começamos, pois, a comunicar de forma não-verbal. Comunicamos pelos sons que emitimos pela boca; pelos movimentos do corpo; pela forma como olhamos e nos relacionamos com os outros, como nos deixamos agarrar e envolver; pelo choro e pelo riso; pelo apetite que temos; e comunicamos também, de forma mais subtil, pelo tom da pele e temperatura e tonicidade do nosso corpo. Poderemos dizer que, no bebé, TUDO é comunicação. Ou melhor, tudo tem carácter comunicativo perante o Outro.
Ora, como tão bem nos têm vindo a demonstrar os estudos ligados à vinculação e, mais recentemente, com o contributo dos estudos em neurociências, à expressividade do bebé deve aliar-se a disponibilidade emocional do adulto para a sua descodificação, afinação afectiva e expansão. Winnicott compreendeu bem este aspecto sublinhando o facto de que um bebé não existe sozinho. E Coimbra de Matos acrescentou que, para que existamos como pessoas, primeiro tem de surgir o investimento e o amor de um outro significativo.
Realço, pois, o conceito de disponibilidade emocional parental (para além da tão falada disponibilidade emocional materna), sublinhando a importância quer do pai quer da mãe para o bom desenvolvimento do bebé. Afinal, na sociedade actual, o papel do pai tem-se transformado. Fruto de uma mudança de mentalidade e de cultura, actualmente a maioria dos pais deseja tanto como as mães fazer parte da vida do seu filho… e tão cedo quanto o momento mágico e profundamente transformador em que sabem da gravidez! E quando a gravidez física vem na sequência de uma gravidez psicológica, a disponibilidade do homem/da mulher para ser pai/mãe é potenciada. O anúncio da gravidez vem tornar real um desejo que povoa o imaginário daquele homem e daquela mulher, onde o bebé já existe, é amado e investido.
Claro que a disponibilidade parental pode ser “acordada” ao longo da própria gravidez ou quando o bebé nasce ou algures na relação entre aquele pais e aquele bebé. O que importa é que haja um momento em que aquele homem se sinta pai e aquela mulher se sinta mãe e se sintam apaixonados pelo seu filho, e isso transforma profundamente a sua maneira de sentir e de pensar. O centro do psiquismo e das preocupações e desejos dos novos pais passa a ser aquela “sementinha de vida” que se está a desenvolver e que se irá transformar num bebé ou aquele bebé que, ao nascer, transformou aquele casal numa família.
Esta disponibilidade emocional parental para pensar no bebé, e que se traduz numa maior vontade para o compreender e o fazer sentir bem, é extremamente importante nos primeiros anos de vida do bebé. Nascente do enamoramento por aquele pequeno ser que é o seu filho, a disponibilidade emocional parental expande a capacidade dos pais para se colocarem no lugar do seu bebé, não ficarem indiferentes aos seus comportamentos, imaginarem o que se passa com ele, procurarem decifrar os seus sinais e compreender o que se pode estar a passar com ele em termos emocionais. Tudo em prol do seu bem-estar e bom desenvolvimento. Correlacionada com a maturidade emocional dos pais, esta disponibilidade permite aos pais pensarem pelo seu bebé, identificando-se com ele. É, pois, uma capacidade relacionada com a sensibilidade e a empatia (capacidade de se colocar no lugar do outro), assente no insight.
Os pais disponíveis emocionalmente expandem a sua capacidade em providenciar um quadro emocionalmente complexo à criança, que inclua a capacidade de contextualizar apropriadamente os motivos da criança, ao mesmo tempo que vão actualizando a sua visão sobre a criança, acompanhando o surgimento de comportamentos novos e inesperados ao longo do seu desenvolvimento.
Esta capacidade de insight parental contribui para que a criança sinta os seus pais como atentos às suas necessidades emocionais e capazes de aceitarem e gerirem diversos tipos de emoções, positivos e negativos, ao mesmo tempo que faz com que a criança se sinta um parceiro efectivo dentro de uma relação recíproca e intersubjectiva (Koren-Karie et al., 2002).
A doença psicossomática como expressão de um falhanço na disponibilidade emocional parental para pensar a experiência emocional e física do bebé
O bebé, ao nascer, encontra-se inteiramente disponível para a interacção desenvolutiva com o outro. Na infância, evidencia-se uma comunicação bastante fluida das necessidades, conflitos, tristezas, desejos, zangas e alegrias que, na ausência de um aparelho de pensar maduro, se expressam pelo corpo. As emoções vividas traduzidas em termos hormonais, de sinais eléctricos, dão informação ao cérebro imaturo do bebé e traduzem-se em comportamentos.
Esta comunicação somato-psíquica parece-me ser menos complexa do que no adulto. O bebé expressa claramente o seu bem e mal-estar. E comunica-o de uma forma multi-modal, ou seja, através de vários meios. Com o desenvolvimento, esta comunicação parece ficar mais defendida, mais oculta, servindo de barreira de protecção da expressão do Eu ao meio que o rodeia. As defesas adaptativas ao meio - que começaram a emergir na infância - vão se complexificando e complexificando o modo como nos relacionamos e transmitimos o nosso sentir e pensar.
Nem sempre o bebé encontra um adulto disponível emocionalmente. O trauma, a existência de psicopatologia, a depressão, a depressão pós-parto, e outros, são tudo exemplos de situações que perturbam a disponibilidade das figuras parentais para pensar o seu bebé, perturbando a vinculação. E o bebé, ao longo do seu desenvolvimento, vai-se ajeitando ao modelo relacional que lhe é oferecido (Schore, 2001), com base no qual vai instituindo os seus modelos internos de actuação.
Nestes casos, a perturbação parental é a lente através da qual os pais vão olhar e entender os seus filhos. Sensíveis à sua própria dor, os comportamentos e sinais do seu filho ecoam e ressoam nas finas cordas do sofrimento ou patologia parental, dificultando a percepção límpida e clara do “Eu” autêntico da criança. Dialogam com o seu filho através do trauma, do sofrimento, da patologia, atribuindo intenções e desejos e necessidades aos filhos que podem não estar nestes, mas no eco que os comportamentos dos filhos fazem na sua dor. Reagem, pois, à sua dor… O diálogo emocional está contaminado com interferências da sua dor, pungente e não-resolvida. Uma dor que, a meu ver, deseja ser ouvida e que quer ser entendida. Por isso, tão facilmente se projecta nos comportamentos dos filhos… Contudo, nestes, causa perturbação, uma vez que a criança não se sente ouvida em si mesma. Sente-se distorcida na e pela dor parental.
O desenvolvimento do afecto e das competências cognitivas para a regulação dos afectos estão intimamente ligadas com a disponibilidade dos pais em funcionar como “caixa de ressonância e de organização” dos afectos dos seus filhos. Quando isto não sucede, na criança fica a frustração e a decepção por não se sentir compreendida… Permanecendo um vazio relacional que anseia ser preenchido. Ajeitando-se a este modelo inseguro de relação de vinculação, estas crianças nem sempre têm confiança suficiente em si e nos outros para procurarem outros objectos de investimento amoroso e narcísico, que melhor respondam ao seu “Eu” autêntico.
Inseguras na vida, pouco confiantes nos outros, estas crianças manifestam dificuldades em gerir o stress que a vida sempre nos traz. A confiança para lidar com o stress adquire-se na relação que temos com os outros, nomeadamente na relação com as figuras de vinculação. É na capacidade parental para conter, elaborar e até transformar os medos que temos em criança - juntamente com percepção de que os pais têm uma perspectiva de curiosidade e de competência face à vida - que ajuda a criança a construir a sua segurança interna e a encarar as dificuldades como desafios, e não como obstáculos difíceis de transpor.
O sofrimento psicológico provocado pela desregulação do afecto materno pode gerar uma imunocompreensão inadequada e a inabilidade na gestão do stress, comprometendo o desenvolvimento dos mecanismos de auto-regulação da criança (Lopo, 2002). As modificações psicobiológicas que acompanham a relação afectiva desencadeiam padrões neuro-hormonais que influenciam o desenvolvimento das regiões fronto-límbicas e das conexões que irão mediar a regulação e a expressão dos afectos (Lopo, 2002). Como a elevação do cortisol provoca alterações no desenvolvimento do sistema límbico e no sistema imunitário, verifica-se, futuramente, uma imunocompreensão limitada e inadequada em situações de stress. Nestas situações, as crianças podem apresentar respostas como retirada comportamental, estilo de coping passivo face a situações desencadeadoras de stress e um aumento de vulnerabilidade à depressão (Lopo, 2002).
Também Allan Schore (2001) foca a importância da regulação psicobiológica exercida pelo cuidador primário no amadurecimento do sistema límbico da criança (especializado na adaptação a situações de stress). Mais concretamente, o autor realça a influência da vinculação segura no amadurecimento do hemisfério direito e na expansão das capacidades de coping da criança (Schore, 1994, 1999b, 2000b, 2000c, todos cit. por Schore, 2011). Neste sentido, o autor relaciona o conceito neurobiológico de «ambiente rico» e o conceito psicológico de «desenvolvimento óptimo» sugerindo o conceito psiconeurológico de ambiente interpessoal «facilitador do crescimento» (Greenspan, 1981; Schore, 1994, ambos cit. por Schore, 2001). Ou seja, um ambiente que afecta positivamente a maturação do cérebro que está dependente da experiência (afectiva e social) e que se encontra correlacionado com a vinculação segura, por oposição ao conceito de ambiente inibidor do crescimento, que afectaria de forma negativa o amadurecimento do cérebro, e que o autor faz corresponder a situações de vinculação insegura. «Histórias de vinculação seriamente comprometidas estão associadas a organizações cerebrais que são ineficientes na regulação dos estados afectivos e na gestão do stress» (Schore, 2001, p. 16).
Emoções à míngua de função pensante/reflexiva – corpo que adoece
Quando o bebé nasce, nasce com ele a esperança – que considero intrínseca ao ser humano – de ser amado, compreendido, estimulado/potenciado numa relação com figuras humanas primárias preferenciais. Isto é bem visível quando nos relacionamos com um bebé recém-nascido. De forma não-verbal, o recém-nascido reage aos comportamentos e atitudes daqueles que dele cuidam: emite pequenos sons, mexe a boca, mexe os bracinhos e as pernas, muda o tom da sua pele, orienta-se para o adulto, ajeita-se aos braços do adulto. Manifesta, pois, a sua receptividade face aos estímulos que o adulto lhe fornece. Comunica.
Para um adulto sensível e disponível emocionalmente, torna-se claro como certos comportamentos do recém-nascido têm um carácter comunicacional. Comunicam o seu bem-estar ou mal-estar face ao seu estado interno, face ao cuidado que lhe é prestado, transmitindo a adequação ou não do comportamento do adulto às suas necessidades. A esperança do bebé é ser entendido e bem respondido, o que o faz sentir-se cada vez melhor e mais confiante na capacidade dos pais em regularem o seu estado interno.
Adoecemos quando a relação é pobre e desinvestida, dominadora ou humilhante, coartando a possibilidade de expressão do “Eu” autêntico. Nesse caso, como uma flor num campo desertificado, murchamos. Mas esperamos que a chuva apareça e nos dê força e alegria para crescer… em direcção à luz do sol.
Referências Bibliográficas
Koren-Karie, Nina; Oppenheim, David; Dolev, Smadar; Sher, Efrat e Etzion-Carasso, Ayelet (2002), «Mothers’ insigthfulness regardin their infants’ internal experience: relations with maternal sensitivity and infant attachment». Developmental Psychology, vol. 38, nº 4, pp. 534-542.
Lopo, Teresa M. D. (2002), «Laços Afectivos Maternos na Alergia Alimentar». Dissertação de Mestrado em Psicossomática. Instituto de Psicologia Aplicada.
Schore, Allan (2001), «Effects of a secure attachment relationship on rigth brain development, affect regulation, and infant mental health». Infant Mental Health Journal, vol. 22 (1-2), pp. 7-66.

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