Catarina Rodrigues
Psicóloga Clínica e
Psicoterapeuta
Provavelmente, já se deparou com
uma situação em que sentiu que o aparecimento de uma doença sem expressão
orgânica na criança tinha um valor comunicacional. Provavelmente, também já o
sentiu em si mesmo.
Neste artigo debruço-me sobre a
dinâmica relacional subjacente ao adoecer psicossomático infantil,
considerando-o a base do adoecer psicossomático do adulto. Com adoecer psicossomático
infantil, estou a pensar nas perturbações do sono; alimentares; digestivas e
gástricas; respiratórias; problemas de pele, que não têm base orgânica.
Experiências pessoais, a
observação de bebés, a clínica infantil e mesmo a clínica do adulto fizeram-me
pensar sobre a influência de aspectos relacionais sobre as doenças físicas,
entendendo-as como vias de comunicação, corporal, sobre esses mesmos aspectos.
Ou seja, aquilo que penso é que, na doença psicossomática, os comportamentos do
bebé e da criança pequena traduzem o seu psiquismo imaturo. O corpo “fala”
aquilo que a mente não consegue elaborar e integrar. Ou seja, o corpo “fala”
aquilo que não se torna pensamento.
Provavelmente, no adulto também a
doença psicossomática continua a evidenciar esta imaturidade e dificuldade em
elaborar e pensar emoções e afectos, que continuam a encontrar no corpo a sua
via de comunicação e expressão. Emoções que, desde a infância, ficaram ser
contenção e elaboração mental por parte de um adulto com um psiquismo mais
maduro, capaz de transformar tais experiências em palavras pensáveis e
transformáveis e que se mantiveram, portanto, nesse ponto de esperança de compreensão e de elaboração.
Ficaram, pois, com o seu desenvolvimento em suspenso, como diria António
Coimbra de Matos. É essa esperança
que encontramos nas pessoas que nos procuram em terapia, e à qual devemos saber
responder sensível e complementarmente.
Na infância, o facto de termos um
cérebro em desenvolvimento, de ainda não falarmos e de estarmos mais
dependentes do meio, leva a que a comunicação se processe essencialmente pelo
corpo… até que a linguagem se institui como meio de comunicação privilegiado.
Começamos, pois, a comunicar de
forma não-verbal. Comunicamos pelos sons que emitimos pela boca; pelos
movimentos do corpo; pela forma como olhamos e nos relacionamos com os outros,
como nos deixamos agarrar e envolver; pelo choro e pelo riso; pelo apetite que
temos; e comunicamos também, de forma mais subtil, pelo tom da pele e
temperatura e tonicidade do nosso corpo. Poderemos dizer que, no bebé, TUDO é
comunicação. Ou melhor, tudo tem carácter comunicativo perante o Outro.
Ora, como tão bem nos têm vindo a
demonstrar os estudos ligados à vinculação e, mais recentemente, com o
contributo dos estudos em neurociências, à expressividade do bebé deve aliar-se
a disponibilidade emocional do adulto
para a sua descodificação, afinação afectiva e expansão. Winnicott compreendeu
bem este aspecto sublinhando o facto de que um bebé não existe sozinho. E
Coimbra de Matos acrescentou que, para que existamos como pessoas, primeiro tem
de surgir o investimento e o amor de um outro significativo.
Realço, pois, o conceito de disponibilidade emocional parental (para
além da tão falada disponibilidade emocional materna), sublinhando a
importância quer do pai quer da mãe para o bom desenvolvimento do bebé. Afinal,
na sociedade actual, o papel do pai tem-se transformado. Fruto de uma mudança
de mentalidade e de cultura, actualmente a maioria dos pais deseja tanto como
as mães fazer parte da vida do seu filho… e tão cedo quanto o momento mágico e
profundamente transformador em que sabem da gravidez! E quando a gravidez
física vem na sequência de uma gravidez psicológica, a disponibilidade do
homem/da mulher para ser pai/mãe é potenciada. O anúncio da gravidez vem tornar
real um desejo que povoa o imaginário daquele homem e daquela mulher, onde o
bebé já existe, é amado e investido.
Claro que a disponibilidade
parental pode ser “acordada” ao longo da própria gravidez ou quando o bebé
nasce ou algures na relação entre aquele pais e aquele bebé. O que importa é
que haja um momento em que aquele homem se sinta pai e aquela mulher se sinta
mãe e se sintam apaixonados pelo seu filho, e isso transforma profundamente a
sua maneira de sentir e de pensar. O centro do psiquismo e das preocupações e
desejos dos novos pais passa a ser aquela “sementinha de vida” que se está a
desenvolver e que se irá transformar num bebé ou aquele bebé que, ao nascer,
transformou aquele casal numa família.
Esta disponibilidade emocional
parental para pensar no bebé, e que se traduz numa maior vontade para o
compreender e o fazer sentir bem, é extremamente importante nos primeiros anos
de vida do bebé. Nascente do enamoramento por aquele pequeno ser que é o seu
filho, a disponibilidade emocional parental expande a capacidade dos pais para
se colocarem no lugar do seu bebé, não ficarem indiferentes aos seus
comportamentos, imaginarem o que se passa com ele, procurarem decifrar os seus
sinais e compreender o que se pode estar a passar com ele em termos emocionais.
Tudo em prol do seu bem-estar e bom desenvolvimento. Correlacionada com a
maturidade emocional dos pais, esta disponibilidade permite aos pais pensarem pelo seu bebé, identificando-se com ele.
É, pois, uma capacidade relacionada com a sensibilidade e a empatia (capacidade
de se colocar no lugar do outro), assente no insight.
Os pais disponíveis
emocionalmente expandem a sua capacidade em providenciar um quadro
emocionalmente complexo à criança, que inclua a capacidade de contextualizar
apropriadamente os motivos da criança, ao mesmo tempo que vão actualizando a
sua visão sobre a criança, acompanhando o surgimento de comportamentos novos e
inesperados ao longo do seu desenvolvimento.
Esta capacidade de insight parental contribui para que a
criança sinta os seus pais como atentos às suas necessidades emocionais e capazes
de aceitarem e gerirem diversos tipos de emoções, positivos e negativos, ao
mesmo tempo que faz com que a criança se sinta um parceiro efectivo dentro de
uma relação recíproca e intersubjectiva (Koren-Karie et al., 2002).
A doença psicossomática como expressão de um falhanço na
disponibilidade emocional parental para pensar a experiência emocional e física
do bebé
O bebé, ao nascer, encontra-se
inteiramente disponível para a interacção desenvolutiva com o outro. Na
infância, evidencia-se uma comunicação bastante fluida das necessidades,
conflitos, tristezas, desejos, zangas e alegrias que, na ausência de um
aparelho de pensar maduro, se expressam pelo corpo. As emoções vividas
traduzidas em termos hormonais, de sinais eléctricos, dão informação ao cérebro
imaturo do bebé e traduzem-se em comportamentos.
Esta comunicação somato-psíquica
parece-me ser menos complexa do que no adulto. O bebé expressa claramente o seu
bem e mal-estar. E comunica-o de uma forma multi-modal, ou seja, através de
vários meios. Com o desenvolvimento, esta comunicação parece ficar mais
defendida, mais oculta, servindo de barreira de protecção da expressão do Eu ao
meio que o rodeia. As defesas adaptativas ao meio - que começaram a emergir na
infância - vão se complexificando e complexificando o modo como nos
relacionamos e transmitimos o nosso sentir e pensar.
Nem sempre o bebé encontra um
adulto disponível emocionalmente. O trauma, a existência de psicopatologia, a
depressão, a depressão pós-parto, e outros, são tudo exemplos de situações que
perturbam a disponibilidade das figuras parentais para pensar o seu bebé,
perturbando a vinculação. E o bebé, ao longo do seu desenvolvimento, vai-se
ajeitando ao modelo relacional que lhe é oferecido (Schore, 2001), com base no
qual vai instituindo os seus modelos internos de actuação.
Nestes casos, a perturbação
parental é a lente através da qual os pais vão olhar e entender os seus filhos.
Sensíveis à sua própria dor, os comportamentos e sinais do seu filho ecoam e
ressoam nas finas cordas do sofrimento ou patologia parental, dificultando a
percepção límpida e clara do “Eu” autêntico da criança. Dialogam com o seu
filho através do trauma, do sofrimento, da patologia, atribuindo intenções e
desejos e necessidades aos filhos que podem não estar nestes, mas no eco que os
comportamentos dos filhos fazem na sua dor. Reagem, pois, à sua dor… O diálogo
emocional está contaminado com interferências da sua dor, pungente e
não-resolvida. Uma dor que, a meu ver, deseja ser ouvida e que quer ser
entendida. Por isso, tão facilmente se projecta nos comportamentos dos filhos…
Contudo, nestes, causa perturbação, uma vez que a criança não se sente ouvida
em si mesma. Sente-se distorcida na e pela dor parental.
O desenvolvimento do afecto e das
competências cognitivas para a regulação dos afectos estão intimamente ligadas
com a disponibilidade dos pais em funcionar como “caixa de ressonância e de
organização” dos afectos dos seus filhos. Quando isto não sucede, na criança
fica a frustração e a decepção por não se sentir compreendida… Permanecendo um
vazio relacional que anseia ser preenchido. Ajeitando-se a este modelo inseguro
de relação de vinculação, estas crianças nem sempre têm confiança suficiente em
si e nos outros para procurarem outros objectos de investimento amoroso e
narcísico, que melhor respondam ao seu “Eu” autêntico.
Inseguras na vida, pouco
confiantes nos outros, estas crianças manifestam dificuldades em gerir o stress
que a vida sempre nos traz. A confiança para lidar com o stress adquire-se na
relação que temos com os outros, nomeadamente na relação com as figuras de
vinculação. É na capacidade parental para conter, elaborar e até transformar os
medos que temos em criança - juntamente com percepção de que os pais têm uma
perspectiva de curiosidade e de competência face à vida - que ajuda a criança a
construir a sua segurança interna e a encarar as dificuldades como desafios, e
não como obstáculos difíceis de transpor.
O sofrimento psicológico
provocado pela desregulação do afecto materno pode gerar uma imunocompreensão
inadequada e a inabilidade na gestão do stress, comprometendo o desenvolvimento
dos mecanismos de auto-regulação da criança (Lopo, 2002). As modificações
psicobiológicas que acompanham a relação afectiva desencadeiam padrões
neuro-hormonais que influenciam o desenvolvimento das regiões fronto-límbicas e
das conexões que irão mediar a regulação e a expressão dos afectos (Lopo,
2002). Como a elevação do cortisol provoca alterações no desenvolvimento do
sistema límbico e no sistema imunitário, verifica-se, futuramente, uma
imunocompreensão limitada e inadequada em situações de stress. Nestas
situações, as crianças podem apresentar respostas como retirada comportamental,
estilo de coping passivo face a
situações desencadeadoras de stress e um aumento de vulnerabilidade à depressão
(Lopo, 2002).
Também Allan Schore (2001) foca a
importância da regulação psicobiológica exercida pelo cuidador primário no
amadurecimento do sistema límbico da criança (especializado na adaptação a
situações de stress). Mais concretamente, o autor realça a influência da
vinculação segura no amadurecimento do hemisfério direito e na expansão das
capacidades de coping da criança
(Schore, 1994, 1999b, 2000b, 2000c, todos cit. por Schore, 2011). Neste
sentido, o autor relaciona o conceito neurobiológico de «ambiente rico» e o
conceito psicológico de «desenvolvimento óptimo» sugerindo o conceito
psiconeurológico de ambiente interpessoal «facilitador do crescimento» (Greenspan,
1981; Schore, 1994, ambos cit. por Schore, 2001). Ou seja, um ambiente que
afecta positivamente a maturação do cérebro que está dependente da experiência
(afectiva e social) e que se encontra correlacionado com a vinculação segura,
por oposição ao conceito de ambiente inibidor do crescimento, que afectaria de
forma negativa o amadurecimento do cérebro, e que o autor faz corresponder a
situações de vinculação insegura. «Histórias de vinculação seriamente
comprometidas estão associadas a organizações cerebrais que são ineficientes na
regulação dos estados afectivos e na gestão do stress» (Schore, 2001, p. 16).
Emoções à míngua de função pensante/reflexiva – corpo que adoece
Quando o bebé nasce, nasce com
ele a esperança – que considero intrínseca ao ser humano – de ser amado,
compreendido, estimulado/potenciado numa relação com figuras humanas primárias
preferenciais. Isto é bem visível quando nos relacionamos com um bebé
recém-nascido. De forma não-verbal, o recém-nascido reage aos comportamentos e
atitudes daqueles que dele cuidam: emite pequenos sons, mexe a boca, mexe os
bracinhos e as pernas, muda o tom da sua pele, orienta-se para o adulto,
ajeita-se aos braços do adulto. Manifesta, pois, a sua receptividade face aos
estímulos que o adulto lhe fornece. Comunica.
Para um adulto sensível e
disponível emocionalmente, torna-se claro como certos comportamentos do
recém-nascido têm um carácter comunicacional. Comunicam o seu bem-estar ou
mal-estar face ao seu estado interno, face ao cuidado que lhe é prestado,
transmitindo a adequação ou não do comportamento do adulto às suas
necessidades. A esperança do bebé é ser entendido e bem respondido, o que o faz
sentir-se cada vez melhor e mais confiante na capacidade dos pais em regularem
o seu estado interno.
Adoecemos quando a relação é
pobre e desinvestida, dominadora ou humilhante, coartando a possibilidade de
expressão do “Eu” autêntico. Nesse caso, como uma flor num campo desertificado,
murchamos. Mas esperamos que a chuva apareça e nos dê força e alegria para
crescer… em direcção à luz do sol.
Referências
Bibliográficas
Koren-Karie, Nina; Oppenheim, David; Dolev,
Smadar; Sher, Efrat e Etzion-Carasso, Ayelet (2002), «Mothers’ insigthfulness
regardin their infants’ internal experience: relations with maternal
sensitivity and infant attachment». Developmental
Psychology, vol. 38, nº 4, pp. 534-542.
Lopo, Teresa M. D. (2002), «Laços
Afectivos Maternos na Alergia Alimentar». Dissertação de Mestrado em Psicossomática. Instituto de Psicologia
Aplicada.
Schore,
Allan (2001), «Effects of a secure attachment relationship on rigth brain
development, affect regulation, and infant mental health». Infant Mental Health
Journal, vol. 22 (1-2), pp. 7-66.
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