Um Filho não é um Plano de Actividades
Texto de Rita Pimenta em entrevista a Catarina Rodrigues
Jornal O Público
Texto de Rita Pimenta em entrevista a Catarina Rodrigues
Jornal O Público
Querer o melhor para os filhos e estimular as suas múltiplas competências são boas ideias em si mesmas, mas isso não implica afogá-los em actividades a toda e qualquer hora. Sobretudo se estas requerem sempre a presença de terceiros.
“É preciso tempo para simplesmente ‘ser’ e ‘estar’. Sem mediadores entre os pais e a criança”, diz ao Life&Style Catarina Rodrigues, psicoterapeuta.
Nalgumas famílias, “falta tempo e espaço para a intimidade, para a preguiça”, afirma a estudiosa de terapia familiar. E vai defendendo a ideia de que não temos de estar sempre a fazer qualquer coisa: “Há que saber desfrutar de momentos de partilha, de silêncio e de cumplicidade.” O dolce far niente que, de forma invisível, ajuda a aproximar ainda mais quem já está por perto.
Há pais que se refugiam nestas “oficinas para toda a família” porque “tiveram infâncias curtas e difíceis, foram obrigados a tornar-se adultos rapidamente e não sabem brincar”. Catarina usa uma expressão muito clara para exprimir estes casos: “São pessoas que não conseguem deixar-se levar.”
Para esses pais, pode ser bastante positivo o encontro com outras famílias em situações de lazer. “Perceber que não há problema em construir um lego todo direitinho com a criança e a seguir divertirem-se ambos a destruí-lo”, por exemplo. Sem drama.
Brincar é natural
Os pais não têm de se sentir culpabilizados por se inscreverem numa sessão de ioga para pais e filhos, num workshop de culinária para mini-chefes e adultos ou num concerto de música para bebés. No entanto, não devem restringir-se a essas “programações”, sempre com alguém pelo meio. Porque um filho não é um plano de actividades.
Os pais não têm de se sentir culpabilizados por se inscreverem numa sessão de ioga para pais e filhos, num workshop de culinária para mini-chefes e adultos ou num concerto de música para bebés. No entanto, não devem restringir-se a essas “programações”, sempre com alguém pelo meio. Porque um filho não é um plano de actividades.
A psicóloga quer sublinhar que, “na sua grande maioria, os pais não são incompetentes para brincar com os seus filhos, do mesmo modo que são as pessoas que têm mais competência para estar com eles e para os estimular”. E até invoca a genética, “um programa com que nascemos e que privilegia a acção/influência da relação dos pais com os filhos”. Ou seja, “há aspectos do nosso programa genético que são activados precisamente na relação humana, preferencialmente na relação parental”.
Catarina Rodrigues, com formação em psicanálise, diz mais: “Como mamíferos, todos, sem excepção, nascemos com habilidade para brincar, sendo que o brincar permite ensaiar/testar comportamentos, experimentar pela imaginação situações, expandirmo-nos... e sobretudo interagir com o outro de forma agradável/lúdica. Não há nada como rir com o outro para nos sentirmos próximos e bem com este outro. E connosco.”
Lembra ainda: “Não é qualquer um que nos faz rir e nos faz sentir bem ou que nos acompanha, de forma divertida, em brincadeiras. Em adultos, há mesmo quem destaque a capacidade de fazer rir na escolha do parceiro amoroso!”
Resumindo: “Brincar é um comportamento natural e brincar com o outro, nomeadamente com os pais, é um comportamento que está geneticamente programado. Brincar com os pais permite expandir as naturais competências e estreita laços afectivos, porque faz ambos os intervenientes sentirem-se bem uns com os outros.”
A obsessão do sucesso
Sem subestimar os educadores nem a qualidade das actividades actualmente disponíveis para as famílias, Catarina Rodrigues quer tão-só alertar para o seguinte: “Tudo o que existe hoje é mediado pela leitura/visão/opinião de um dito ‘especialista’, anulando o tempo do não saber, que é aquele que nos estimula a experimentar as coisas de várias formas, ou seja, a descobri-las por nós próprios (estejamos a falar de brinquedos, livros ou actividades) e a descobri-las ao longo do tempo.”
Sem subestimar os educadores nem a qualidade das actividades actualmente disponíveis para as famílias, Catarina Rodrigues quer tão-só alertar para o seguinte: “Tudo o que existe hoje é mediado pela leitura/visão/opinião de um dito ‘especialista’, anulando o tempo do não saber, que é aquele que nos estimula a experimentar as coisas de várias formas, ou seja, a descobri-las por nós próprios (estejamos a falar de brinquedos, livros ou actividades) e a descobri-las ao longo do tempo.”
Com 37 anos e uma filha de dois, a psicoterapeuta, com consultório em Lisboa e na Charneca da Caparica, identifica o objectivo (e obsessão) que subjaz a todo este investimento dos pais nas competências das crianças: o sucesso. “Ser e estar já não são suficientes para uma sociedade que medeia todas as relações através de jogos/livros/actividades desenvolvidas pelos especialistas, para ajudar os pais a estimular e educar os seus filhos... [e os transformar] em superpessoas.”
Esta colaboradora do PÚBLICO, que assina regularmente artigos de opinião, questiona sem julgamento: “Qual o pai que não quer o melhor para o seu filho e que não quer que ele esteja o mais bem preparado possível para o futuro – cognitiva e emocionalmente?” Mas pensa que “esta lógica é superficial e abusiva... e certamente pouco assente em investigações sérias sobre a relação pais-filhos e sobretudo sobre o que nos faz pessoas.” E suspeita: “Certamente, é uma lógica assente numa óptica comercial – apelando à compra.”
Por isso lhe desagrada o excesso de informação nos produtos destinados às crianças, como “a idade indicada para determinado brinquedo ou livro, que competências estimulam ou como se devem usar”. Sente que fica a faltar a espontaneidade: “Parece que passamos a vida a seguir livros de instruções e sempre com o receio de fazer a coisa errada.”
Mas a verdade é que há um sentimento entre muitos pais de que não podem falhar na educação dos filhos, tudo tem de sair bem e até a brincadeira deve ser agendada e estimular competências. Rumo ao “tal” sucesso.
Catarina Rodrigues não aceita um mundo assim. E argumenta: “A psicanálise actual, que se apelida de psicanálise relacional, defende precisamente que é a qualidade da relação que nos ajuda a sermos pessoas e a desenvolver as competências que nos são próprias. Ou seja, é através da relação com o outro que genuinamente nos tornamos nós próprios – e isso, a meu ver, é o mais importante: sentirmo-nos autênticos e felizes connosco, mesmo que não sejamos superpessoas.”
Essencial é a alegria
Assim, para a psicóloga clínica, “mais do que actividades, brinquedos, livros (que deixam o seu lado lúdico para se tornarem manuais para pais e crianças, não deixando espaço para o que espontaneamente retiramos da história, isto é, para a nossa leitura pessoal, fruto do eco que aspectos da história fazem em nós), o que parece essencial no desenvolvimento humano é o entusiasmo e a alegria na relação com aqueles que amamos, desejavelmente os pais”.
Assim, para a psicóloga clínica, “mais do que actividades, brinquedos, livros (que deixam o seu lado lúdico para se tornarem manuais para pais e crianças, não deixando espaço para o que espontaneamente retiramos da história, isto é, para a nossa leitura pessoal, fruto do eco que aspectos da história fazem em nós), o que parece essencial no desenvolvimento humano é o entusiasmo e a alegria na relação com aqueles que amamos, desejavelmente os pais”.
Afinal, no fim da paródia, “aquilo de que nos lembramos quando nos vamos deitar não é do imenso que o nosso potencial cognitivo se sentiu estimulado com a brincadeira, mas do riso e da alegria partilhada com os nossos pais”. Um verdadeiro sucesso.