Amar
Publicado originalmente com o título "O amor do outro como trampolim" no Jornal Público, em Dezembro de 2014
Catarina Rodrigues
Psicoterapeuta
“Foi muito importante para mim
poder exprimir o ódio e a descrença que sentia, mesmo em relação à terapia e a
si. Senti que você aceitou esta expressão e, ao invés de se assustar e se
sentir muito posta em causa, como acontecia com a minha mãe, ou não saber o que
fazer comigo e achar que eu estava a exagerar, como aconteceu com o meu pai,
você aceitou esse ódio como uma parte natural do meu percurso pessoal. Eu
preciso odiar. Preciso queixar-me de tudo e de todos… para depois renascer eu.
Só espero consegui-lo. O meu medo é ficar encerrada neste ódio para sempre. Ou
ficar sempre a viver nesta oscilação emocional, que me esgota e me faz
concretizar menos do que eu queria e tenho capacidade.
“Eu percebo que, para sair daqui
onde estou, preciso perceber intimamente que a minha vida só depende de mim, da
minha apreciação de mim e da minha energia para concretizar os meus projectos.
Mas, para isso, eu preciso tolerar os meus fracassos, as minhas angústias e não
me deixar abater por eles e vê-los como a totalidade de mim. São uma parte de
mim e são também uma parte dos outros. São uma fase, um momento. E a raiva e o
ódio são a expressão no limite da frustração que tais situações me provocam. É
essa frustração que não posso deixar que me bloqueie e tome conta de mim. Por
isso pensei: e se eu, ao invés de fazer braço de ferro ou me isolar em relação
ao meu marido, ou aos meus filhos, ou aos meus pais, ou aos meus amigos, quando
as coisas correm mal, diferente do que eu desejava, e se eu, logo que as minhas
emoções me deixarem, estabelecesse uma ponte afectiva para eles? Isto é, comunicasse
com eles sobre os meus sentimentos, mas sem rancor, sem amuo. Não estou com
isto a dizer que não vou viver a raiva e a frustração. São naturais. Assim como
o é a frustração dos nossos desejos e vontades. Mas de que vale manter-me
amuada à espera que venham dar-me mimo, soluções para a minha vida ou dizer que
eu tenho muita razão? Provavelmente não tenho e estou a reagir sem maturidade.
Fazer as pazes, sair do encerramento em mim própria e criar pontes para chegar
aos outros é fundamental.
“Ninguém tem a razão total. Eu
tenho-me alimentado de ressentimento e desejos de abandono e rejeição. O que só
tem feito com que me sinta cada vez mais afastada e sem tolerância para quem me
rodeia. Essas pessoas não têm o direito de errar, de frustrar-me, pergunto eu?
E face a isso amuo ou transformo e reivindico? Eu sei que é mais fácil falar do
que fazer, mas alimentar este ressentimento e ilusão de que só noutra relação
serei verdadeiramente feliz não me tem levado a lado nenhum.
“Na relação que os meus pais tiveram
comigo, não me souberam ajudar a construir instrumentos nem a sentir-me
competente para gerir dentro de mim os sentimentos de raiva e frustração. E
eles tornaram-se tremendamente poderosos. Mas eu também não consegui aproveitar
outras relações para esta aprendizagem. Continuei à espera dessa aprendizagem e
dessa conquista na relação com os meus pais. Mas agora, isso tem menos
importância. Terei de fazer esse caminho por mim própria. E através de outras
relações. Descobrir o que eu acho ser
o melhor para mim e não perder tanto tempo a queixar-me/ficar ressentida com a
falha do cuidado do outro. Se o outro cuidou mal de mim, cabe-me dizer-lho e, e
sobretudo, cuidar eu de mim. Amar-me
e talvez assim amar mais os outros… E, porque amor gera amor, ser assim também
melhor amada pelos outros.”
Não é fácil sair da espiral de ressentimento, ódio e
encerramento em si mesmo. Cada um tem o seu ritmo. Uma relação de amor,
terapêutica e/ou outra, ajuda, mas não cura só pelo facto de existir. O amor do
outro funciona como base e trampolim. Funciona como um acolhimento seguro face
às tempestades internas de cada um. É essencial, sem dúvida, mas, em meu
entender, o que verdadeiramente é transformador é o percurso do próprio no sentido de se amar e assumir a
inevitabilidade de ser o agente da sua vida.