Não consigo sair daqui!
Publicado originalmente no Jornal Público, em Dezembro de 2014
Catarina Rodrigues
Psicoterapeuta
Apresento hoje o primeiro de dois artigos que, através de um
relato imaginário de uma paciente numa sessão, pretendem ilustrar as questões
do ódio e da dependência e a possibilidade de amar e conquistar a capacidade de
ser-se agente da sua própria vida.
“Não consigo sair daqui. Não consigo deixar de ser quem sou,
agir deste modo estúpido e amuado, rancoroso e exigente. Penso que já estou
melhor e volto ao mesmo. Uma contrariedade, um sentimento de não ser ajudada,
de não pensarem em mim, de não estarem comigo, de não me respeitarem, de não me
ligarem, de não me darem atenção… no fundo, de não me sentir amada pelas
pessoas que me são significativas. Sim, é isso, eu não consigo controlar este
sentimento de não me sentir amada cada vez que acontece algo que sai fora do
que estou à espera. Algo que me faz sentir rejeitada, excluída, fora da atenção
do outro, fora do cuidado do outro ou incompetente. Eu não consigo controlar o
meu rancor, o meu ressentimento, a minha angústia. Mesmo que a razão me diga
que estou a exagerar, que não é preciso dar toda aquela dimensão, que tudo se
resolvia se eu conseguisse desdramatizar e reivindicar sem estes sentimentos de
ressentimento e de amuo. Nem imagina como me fico a sentir humilhada e
infantilizada. E face a isso, só posso continuar com o amuo, com o mal-humor,
com as queixas e as acusações, de maneira a ver se o outro me pede desculpa e
eu volto a sentir algum amor próprio. Entende? Se o outro não me dá razão, a
parte de mim que acha que eu estou a ser uma infantil, uma palerma apodera-se
de mim toda… e eu sinto-me um lixo e acho que não valho nada e que nunca vou
conseguir ser feliz e fazer os outros à minha volta felizes. E fico a odiar
essa pessoa. Só me apetece é abandoná-la, magoá-la… agarrando-me à ideia, que
não sei se é ilusão ou não, de que sem ela eu seria mais feliz e poderia
encontrar alguém que me compreendesse melhor e me fizesse sentir melhor.
“Mas penso agora que talvez o problema seja também meu. Que
a insatisfação e a humilhação residam em mim… e sejam reactivadas na relação
com os outros. Penso no meu passado e vejo que fui assim sempre… com todos… e
aprendi a sê-lo tão cedo quanto na minha infância, com a minha mãe e o meu pai,
onde me sentia excluída, com falta de atenção e sozinha com as minhas emoções. Eu
era assim com pais, amigos e namorados. Eu sou
assim. Não consigo deixar de ser assim… e não creio que a psicoterapia me possa
ajudar. Deixei de acreditar. De que me serve pensar nisto? Eu não consigo sair
de dentro de mim. Eu não consigo deixar de ser quem sou… e isso faz-me sentir
humilhada, esmagada, infeliz e com raiva e ódio de todos. Até de si, que não me
pode ajudar. Mas sobretudo de mim. Ódio de mim, pois percebo que era só levar
as coisas menos a sério, relacionar-me com mais as pessoas, não ficar
rancorosa, não ser tão crítica de mim e dos outros, abraçar outros projectos. Relativizar.
Amar.”
Mas como amar quando se sente tanto ódio, tanta humilhação?
Quando existe uma boa relação, terapêutica e/ou outra,
persiste o amor e a paciência. Em tais relações de amor, aceita-se o ódio, mas
coloca-se limites à agressividade, sem retaliar no amor, o que ajuda a tomar
consciência, a diminuir a culpa e a super-exigência internas.
Há marcas das relações precoces significativas que são
lentas a desfazer. A relação terapêutica permite a expressão e a vivência de
afectos tão fortes quanto o ódio e a desesperança, sem retaliação, sem perda de
afecto e mantendo a esperança. O amor do terapeuta pelo seu paciente, pelo novo
estilo relacional que estabelece, actua como um contrapeso ao ódio e à
destruição internas. Só o amor permite criar sentido na vida. Alimenta o
sonho-projecto. Mantém vivas as partes do paciente que são positivas e lança
iluminação sobre novos caminhos. Mantém viva a ideia de que é possível a
concretização pessoal e a construção de um projecto de vida que o próprio ame.
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