21/03/2018

Retomar o desenvolvimento. O pensamento de Donald Winnicott em Congresso

Retomar o desenvolvimento. O pensamento de Donald Winnicott em Congresso

Retomar o Desenvolvimento – a propósito do II Congresso Luso-Brasileiro sobre o Pensamento de Donald W. Winnicott
Catarina Rodrigues, Cláudia Fonseca, Felisberto
Cardoso, Irene Borges Duarte, João Boavida, Maria do Rosário Belo e Tiago Sequeira
Quem procura uma consulta de psicoterapia e tem a coragem interna e a esperança relacional de iniciar este caminho vai, de forma consciente ou inconsciente, à procura de “retomar o seu desenvolvimento”. Dito de outra forma, é alguém que sente, de forma intuitiva, que se lhe for possibilitado um estilo relacional voltado para a reflexão sobre si mesmo, onde possa pensar tudo sem tabus nem medos, com respeito e tolerância, e com o olhar na expansão das competências que ficaram inibidas ou sub-desenvolvidas ao longo do seu desenvolvimento, conseguirá desvelar um estilo relacional mais fluido, feliz, criativo, menos crítico consigo mesmo e com os outros, mais resiliente e expansivo.
Sente-o de forma intuitiva porque na matriz original do sujeito existem forças psíquicas que, como diria Winnicott, tendem para a saúde mental, se assim agir como facilitador o meio humano e relacional sentido como “suficientemente bom” no acolhimento, compreensão e atendimento das necessidades e características do bebé, as quais o autor designou por “gesto espontâneo” do bebé.
A pessoa que procura a psicoterapia sente, ainda que às vezes não o consiga explicar verbalmente (saturada que está de estilos relacionais e comunicacionais frustrantes e/ou agressivos), que se encetarem consigo uma relação centrada em si própria e com o olhar entusiasmado nas suas competências e qualidades, então poderá amadurecer e sentir-se mais livre, cooperativa, tolerante e confiante com o seu modo de se relacionar com o seu mundo interno e externo. A balança relacional passa a pesar mais do lado das competências. Competências todos temos, mas a verdade é que não são todas as relações que as sabem estimular em nós. E o ser humano desenvolve-se na relação e através da relação.
Esta será mesmo a essência do trabalho psicoterapêutico: oferecer-se como uma relação centrada na pessoa do paciente, voltada para as competências, para a responsabilização do próprio pela sua vida, para a construção de uma vida que o próprio sinta que é digna de ser por si vivida… e que vai sendo descoberta ao ritmo único do par terapeuta-paciente.
Neste sentido, o interesse genuíno pelo paciente é um ingrediente distintivo e deve servir de fator de diagnóstico para o bom crescimento e desenvolvimento da relação terapêutica. Quando gostamos de alguém, sentimos interesse e prazer em estar com ela, mas sobretudo apostamos nessa pessoa. Apostamos/cremos no seu desenvolvimento/crescimento, e é esse entusiasmo e crença que são sentidos, na comunicação intersubjetiva, pelo paciente e potenciam neste um olhar sobre si mesmo noutra perspetiva: como alguém gostável, mas sobretudo como alguém com potencial e valor. Um olhar fundamental para dar sentido e projecto de vida ao sujeito. Um olhar que faz nascer psicologicamente o sujeito – como ser humano com futuro na sua sociedade.
Pensando na influência do pensamento de Winnicott (psicanalista e pediatra inglês) na psicanálise actual, a Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica (AP),  presidida pelo Prof. Dr. António Coimbra de Matos e cuja comissão de ensino é presidida pelo Prof. Dr. Carlos Amaral Dias, vai realizar nos próximos dias 20 e 21 de Junho, no ISPA, um congresso dedicado a este que é um dos psicanalistas com mais importância para o desenvolvimento das descobertas de Freud, nomeadamente no que diz respeito ao tratamento e prevenção de doenças de foro psico-emocional graves. 
O congresso vai ter por título "A retomada do amadurecimento". Um conceito winnicottiano que tem por base o princípio de que a doença psíquica ocorre no ser humano sempre que este se vê impedido de amadurecer (evoluir). Isto é, o ser humano teria como tarefa conduzir e levar a bom porto a sua própria vida, adoecendo sempre que tal não acontece. As formas de adoecer são variadas, mas o sofrimento humano gira sempre em torno de questões básicas, como: sentir-se real e sentir que a vida vale a pena, sentir-se útil e capaz de conciliar sentimentos de ódio e frustração com sentimentos de amor e realização (sendo que na saúde imperam os segundos) e ter capacidade para gerir os afectos nas relações interpessoais.

O interesse do estudo das ideias veiculadas por Winnicott está não só na optimização dos processos de cura (dentro dos consultórios dos psicanalistas), como também na aplicação prática e preventiva destes conceitos no plano social mais alargado como, por exemplo, em contextos escolares, hospitalares e instituições de trabalho com pessoas de todas as idades. Por isso, pensamos que o II Congresso sobre o Pensamento de Donald Winnicott é útil para vários públicos: psicólogos, médicos, assistentes sociais, enfermeiros, fisioterapeutas, animadores sociais, professores; pais ou educadores que tenham a cargo crianças ou adolescentes; profissionais que trabalhem com idosos; ou simplesmente pessoas interessadas na compreensão da natureza humana e no auto-conhecimento.
Realizado em colaboração com a Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana, e com o apoio da International Winnicott Association, este Congresso vai ser um momento único de possibilidade de aprendizagem e enriquecimento pessoal e profissional, contando com a presença de ilustres psicanalistas nacionais e internacionais, como António Coimbra de Matos, Carlos Amaral Dias, Cláudia Dias Rosa, Elsa Oliveira Dias, Laura Dethiville, Roseana Garcia, Zeljko Loparic. Porque acreditamos que o diálogo multidisciplinar é enriquecedor, contamos ainda com a presença do Prof. Dr. João Maria André, da área da Filosofia, e do Prof. Dr. João Gomes Pedro, da área de pediatria.
Estamos confiantes que este será um Congresso com grande adesão e rico debate de ideias dentro da área da saúde e de grande utilidade para todos os profissionais que se interessam pela saúde e bem-estar social.

Vinculação insegura. Insegurança para a Vida?

Vinculação insegura. Insegurança para a Vida?
https://www.publico.pt/2014/11/02/sociedade/opiniao/vinculacao-insegura--inseguranca-para-a-vida-1674848

Catarina Rodrigues
Publicado originalmente no Jornal Público, 2 de Novembro de 2014.



 Interessam-me as questões de como o estilo relacional parental contribui para a formação da personalidade do sujeito. “Quem eu sou” está, numa primeira fase da vida, associado aos cuidados parentais e às projecções dos pais. O modo de interagirem com o filho, física e verbalmente, consciente e inconscientemente, contribui para a definição da identidade do próprio. “Eu sou” na continuidade da relação com as minhas figuras significativas. Não quero com isto dizer que “eu sou o que as minhas figuras de vinculação atribuem que eu sou”, mas realçar que “eu vou definindo quem sou na interacção com aquilo que atribuem que eu sou e as minhas características, no momento presente”, isto é na complexa relação biológico, psicológico e relacional (epigenética).

O bebé pode sentir os cuidados dos seus pais como adequadamente responsivos às suas necessidades e o seu “eu” tem mais possibilidade de se desenvolver de forma genuína, ou pode sentir a relação dos seus pais para consigo como desadequada, não confiável, frustrante ou intolerante e o seu “eu” sente-se bloqueado, inibido ou distorcido. O seu desenvolvimento fica em suspenso. Face às necessidades insatisfeitas existe uma intuição do tipo de resposta necessária, o que o sujeito pode viver de forma mais proactiva, virando-se para o mundo relacional exterior, procurando tipos de relação alternativos, ou de forma menos saudável, isolando-se socialmente, inibindo oportunidades e mudanças, bloqueado pela acção inconsciente da tríade culpa, sentimento de inferioridade, inflexão da agressividade (“sou eu que não presto ou sou eu que sou muito exigente, não são os outros que não me correspondem bem”).

A culpa e os sentimentos de inferioridade, decorrentes de uma vivência muito crítica e desvalorizante dos insucessos e mesmo dos sucessos (geralmente sentidos como aquém das expectativas), debilitam a auto-estima e enredam o sujeito num verdadeiro novelo de sofrimento interno. Sente-se incapaz, por vezes mesmo miserável por não ser capaz ou por sentir pânico de fazer coisas ditas simples. O que concorre para um sentimento de dependência, geralmente inconsciente, face à iniciativa/cuidado/interesse do outro. Por exemplo, o sujeito sente-se infeliz por ninguém estar disponível para ele e não se dá conta que ele próprio não toma iniciativa ou que protela decisões. Permanece à espera do entusiasmo/incentivo do amor parental, agora deslocado para outras pessoas significativas da sua vida. Por isso mesmo, a crítica, a rejeição ou a desilusão do outro têm um efeito devastador no sujeito. Assentam em terreno fértil e o sujeito tem dificuldade em se defender (deflexão da agressividade para o exterior) ou manter intacta a sua auto-imagem (resiliência).

Nem todos os pais beneficiam de um sentimento de segurança básica em si mesmo que lhes permita transmiti-la aos seus filhos. A vida pode ter sido madrasta com eles e ter-lhes impedido de se desenvolverem de forma completa e segura. Apesar do seu amor pelos filhos, não são capazes de se descentrarem das suas próprias necessidades insatisfeitas. Encerrados em si mesmo (por vezes, passando uma vida inteira a procurar compreender-se e compreender os outros), é-lhes difícil empatizar e reconhecer como diferenciadas as necessidades de um outro.
Uma vinculação insegura promove um estilo inseguro de relação com o mundo e traduz-se num factor importante de limitação da vida da pessoa. Existe uma sensibilidade extrema a situações de mudanças, separações, viagens, desafios, assente num medo do abandono, da perda, da mudança. Repará-la requer perseverança e sobreviver a uma crítica interna feroz e esgotante; traçar o caminho de se assumir como agente competente para a sua vida, aceitando sucessos e insucessos; e libertar-se da idealização do outro, derivação da necessidade da boa relação parental precoce insatisfeita, para se lançar à conquista e descoberta de si.

26/02/2018

O amor do terapeuta


por Catarina Nascimento Rodrigues


Publicado originalmente no Jornal Público de 1 de Junho de 2017


Para que seja possível uma Análise bem sucedida não basta apenas a técnica psicanalítica. A meu ver, a retoma do desenvolvimento só é possível porque, na relação com o terapeuta, se sente, de forma inequívoca, como só o inconsciente pode saber, o entusiasmo e o afecto deste, que, na escuta atenta e interessada, sente esperança e prazer em estar/conhecer/acompanhar as mudanças/dores/conquistas/decepções do seu paciente. Sem julgamento e sem expectativa. Mas com aposta. Com criatividade e persistência no alimento do laço afectivo criado face às desesperanças e descrenças do paciente. Com esperança no futuro e na realização pessoal deste. Tudo características do que designo por amor do terapeuta.

É a arte da nova relação que se instala entre aquele paciente e aquele terapeuta naquele momento das suas vidas, permitindo ao paciente uma experiência bem sucedida de ser ouvido, compreendido e estimulado. Em minha opinião, o entusiasmo e o estímulo que o terapeuta demonstra, consciente e inconscientemente, pelo seu paciente - e que nada mais é do que a resposta complementar face ao que falhou -, incentiva este último a assumir a sua agencialidade e conquistar o prazer e a realização pessoal na sua vida.

Sozinhos sobrevivemos. Com o outro, conquistamos o prazer e o sentido de viver. Vivemos com o outro. Crescemos e expandimo-nos em sociedade. Porque o reconhecimento e o orgulho do outro são “alimentos” essenciais. É a certeza da partilha e do olhar deslumbrado do outro que estimula a criatividade, a beleza e a inovação das nossas criações.

Mas, entenda-se, esse estímulo, esse incentivo por parte do terapeuta não é o mesmo que delinear um caminho para o seu paciente. É um incentivo que nasce do profundo conhecimento e da sintonia sentida com o seu paciente. Trata-se de dar voz ao paciente, numa escuta atenta e interessada daquilo que é dito de forma consciente e daquilo que se sente do que é dito de forma inconsciente – o self autêntico do paciente.

Para mim, a atenção, o interesse, o afecto real do terapeuta pelo seu paciente são o núcleo de uma relação terapêutica bem sucedida. O interesse genuíno demonstrado vem colmatar a falha primária e devolver o sentido de valor e de importância ao sujeito e, assim, permitir-lhe reconhecer-se como pessoa com valor e passível de ser gostada e admirada. Não existimos como pessoas sem essa postura interessada e amante do outro significativo. Ela é a base da vida mental e emocional. Coimbra de Matos realça neste sentido o facto de a espécie humana ser a única onde se amamenta e se ama olhos nos olhos/face a face.

Neste sentido, o terapeuta que acompanha o paciente pelo inferno emocional da sua depressão não pode ser neutro, distante, enfim, um técnico. À semelhança da relação primária, a possibilidade de olhar o terapeuta/a mãe, perscrutá-lo/a, senti-lo/a é importante para conseguir encontrar amor por si mesmo no olhar e nos gestos do seu terapeuta. Precisa ver para crer. Precisa utilizar os vários sentidos para aferir da veracidade do afecto do terapeuta. Precisa sentir o calor do seu afecto na comunicação intersubjectiva que vai acontecendo ao longo das sessões.
Para tal, o terapeuta precisa sentir-se livre para se poder implicar com autenticidade naquela relação. Precisa confiar em si mesmo e na sua intuição, assente na boa sintonia construída com o seu paciente, para encontrar a resposta única e criativa em relação àquele paciente. Não pode fechar-se na neutralidade da técnica. Precisa sentir-se livre na nova relação construída, dando-se também de forma inteira, persistente e criativa.

Relação Psicanalítica: uma relação a Olhar para o Futuro


por Catarina Nascimento Rodrigues


 Publicado originalmente no Jornal Público de 8 de Junho de 2017

Penso a relação terapêutica como uma relação de enfoque no maior auto-conhecimento do paciente (e do terapeuta, por consequência de ser um processo rico também para este), de onde resulta uma maior capacidade de se constituir como agente da sua vida. A relação terapêutica profícua permite a descoberta de novos estilos relacionais dentro do próprio e é privilegiada porque, quando se chega ao terapeuta, pelo menos uma parte da pessoa está receptiva à mudança e à auto e hetero-análise.

Muitas vezes, a mudança é já desejada pelo próprio, mas, no clima emocional em que vive, por se ter desenvolvido o que Coimbra de Matos chama o ciclo vicioso, é muito difícil consegui-la. Constituiu-se um modelo relacional de referência como resposta possível ao clima emocional oferecido pelas figuras significativas. É necessário a intervenção criativa e livre de um outro que possibilite ao sujeito ter a hipótese de desenvolver o estilo relacional desejado ou, pelo menos, sair da trama emocional enquistada. O terapeuta está numa posição privilegiada para oferecer tal experiência relacional pela sua formação profissional, mas sobretudo se se sentir profundamente interessado por aquele paciente.

Tal caminho não ocorre da noite para o dia. Necessita de uma continuidade na experiência dessa relação bem sucedida com o terapeuta para que se consolide e, assim, possa ganhar peso sobre a dor e a desconfiança na mente moldada pelas más experiências com as figuras significativas. Demora o seu tempo a que a confiança no amor/interesse genuíno do outro por nós próprios (e, consequentemente, a confiança e interesse de nós por nós próprios) tenha mais peso que a desconfiança (no sentido de perda de confiança) no outro (e em nós), assente numa experiência precoce decepcionante e desvalorizante. Demora tempo a deixarmos de nos ver no reflexo do espelho dos outros significativos e passarmos a vermo-nos noutros espelhos, que, narcisando-nos, nos permitem construir o nosso próprio espelho: vermo-nos a nós próprios. Demora tempo a perceber como esse espelho primário nos deformou e acreditar que podemos ter outra forma. Uma forma que intuímos em relação a nós próprios e que é aquela que esperamos que o terapeuta reconheça e com a qual se relacione… dando menos enfoque à forma de relacionar doente e enquistada… que acaba, numa análise bem sucedida, por perder a dominância.

Provavelmente, existe um limite para a transformação possível pela psicoterapia. Existe provavelmente um núcleo que, tendo sido instituído precocemente, antes da palavra, como em situações de quadros de depressão, é difícil reverter. O olhar da terapia é, por isso, para mim, para o futuro. Só no futuro podemos fazer diferente. Mais conhecedores de nós próprios e com novas ferramentas relacionais, emergentes no afecto e na sintonia da relação terapêutica. Por isso, falo de esperança. Esperança num futuro diferente. Mais feliz, num sujeito mais capaz de se sentir agente da sua vida, com maior conhecimento de si mesmo e dos outros, mais livre para optar nas relações que o rodeiam.

O trabalho psicoterapêutico é acompanhar o paciente na sua auto-análise. Neste processo existe alívio e cura do sintoma… mas é a relação afectiva estabelecida entre terapeuta e paciente que traz um novo estilo relacional que será o grande motor de mudança do sujeito. Ou seja, a pessoa não muda apenas porque compreende a sua história. A pessoa muda porque existe uma relação onde, sentindo-se amado/apreciado, compreendido e estimulado, ganha motivação/impulso para se lançar na sua própria vida, para dar acção ao seu projecto de vida: aquilo que acredita/sente que é o que o faz sentir realizado e feliz.

É possível anular completamente a tristeza? Penso que não. A maior auto-consciência não anula a tristeza de sentir que, com certas figuras significativas, o sujeito não consegue ter uma relação de intimidade, confiança e desenvolvimento. Mas aceita-se a realidade. Não é possível. E, por isso, talvez se sofra menos. Diminui a culpa. Aumenta a esperança na procura de novos parceiros de desenvolvimento.

O ódio na Depressão


por Catarina Nascimento Rodrigues
Publicado originalmente no Jornal Público de 25 de Maio de 2017 



Na minha escuta psicoterapêutica, encontro muitas vezes, nas palavras dos meus pacientes, profunda solidão. Mesmo que, na sua vida, se encontrem rodeados de pessoas, incluindo pessoas significativas. Solidão consequência de se sentirem desamparados, sós face às suas necessidades emocionais. Não estou, pois, a falar da solidão essencial, na medida em que estamos sempre irremediavelmente connosco próprios, mas sós no sentido de procurarmos um outro e não encontrarmos ressonância emocional para as nossas necessidades emocionais. O sujeito não se sente prioridade na mente do outro, nem nela sente ter lugar de valor e de orgulho… ou não sente no outro a desejada empatia e vontade de despender tempo emocional e/ou físico na tentativa de compreensão do seu sofrimento ou compartilhar a sua alegria.

Esse lugar de acolhimento, empatia, amor, privilégio, orgulho por parte do outro, nomeadamente de um outro significativo, é a grande procura da vida/mente humana. Porque sabemos intimamente que é nesse lugar que nos sentimos bem, nos expandimos e nos superamos a nós próprios. Como já aludi em artigos anteriores, o entusiasmo do outro, o seu carinho/afecto e o seu orgulho por nós funciona como poderoso trampolim para o desenvolvimento.

Os outros resultam, pois, de uma procura. Aliás, desde que nascemos que nos procuramos ligar ao outro, física e, sobretudo, emocionalmente. A ligação emocional é alimento da alma. Ela dá ânimo, esperança, tranquilidade, segurança para enfrentarmos os desafios da nossa vida. Confere-nos instrumentos para voltarmos a ser nós próprios depois das tempestades por que todos passamos na vida.

A relação amante é, pois, profundamente interessada, persistente e criativa. Faz-nos expandir e desenvolver. Na sua ausência, fica a frustração e a angústia de uma necessidade emocional não acolhida. E gera-se o terreno fértil para a emergência do Ódio - em relação ao outro, que não corresponde, e a si próprio, que é tão mau ou insuficiente que não merece o amor/resposta do outro.

As vozes críticas internas, numa mente emocionalmente só e que se sente sem ou com pouco valor para os outros, encontram terreno fértil para se expandirem e tornarem-se dominantes. Arrasam tudo. Divertem-se a humilhar e a aniquilar o sujeito. Todos os actos e comportamentos são vistos numa perspectiva de desvalor e de crítica. Por vezes, a crítica interna é tão forte que o sujeito sente vontade de se bater, fazer-se mal. O ódio e o desprezo em relação a si mesmo são arrasadores. E muito difíceis de travar. O lado amante de si mesmo não tem força contra estes impulsos destruidores. Ou seja, o sujeito pode ter consciência destes pensamentos auto-destrutivos, auto-castigadores, mas não conseguir impedi-los. Na realidade, não tem amor próprio onde se agarrar… Acredita e sente-se merecedor de tal humilhação.

A vergonha que aparece depois da tempestade de ódio contra si mesmos é também ela avassaladora. Depois do desprezo/desespero fica o sentimento de solidão profunda e de desesperança.

Não é fácil procurar ajuda nesta fase. A vergonha e o desprezo são tão intensos que por vezes sobrepõe-se a necessidade de se fechar sobre si mesmo… Na melhor das hipóteses, este fechar-se em si próprio constitui-se como um caminho interior e pessoal, ainda que muito doloroso e desgastante emocionalmente, na procura de ajudar-se a si mesmo, perscrutando o que se passa emocionalmente consigo. Há coisas que provavelmente só contamos a nós próprios. Essa possibilidade de uma relação absolutamente honesta e transparente connosco pode ser dura… mas é também parte do caminho.
Mas é impossível fazer todo o caminho sozinho. Para que não vença o ódio, é preciso um outro capaz de nos amar a quem nos possamos ligar e a quem possamos depositar os nossos pensamentos desorganizados, os nossos sentimentos perturbadores, o nosso ódio em relação a nós próprios e ao mundo… e que não fique contaminado com essas emoções. Mantenha a esperança e o amor por nós. Essa é a função do terapeuta.

Origem da Depressão


por Catarina Nascimento Rodrigues

Publicado originalmente no Jornal Público a 18 de Maio de 2017



Tenho aprendido com os meus pacientes que a depressão é sempre uma depressão infantil, na medida em que radica numa dinâmica relacional primária sentida como desvalorizante do próprio na infância. A continuidade e coerência dessa experiência tem impacto na mente do bebé ou da criança, no sentido de ficar imprimida na mente. Efectivamente, o conhecimento que o bebé tem das figuras parentais é um conhecimento emocional fino, detectando emoções que, nos pais, podem, inclusive, ser inconscientes. Coimbra de Matos tem uma expressão feliz neste sentido: a criança não aceita a mentira. O bebé e a criança são verdadeiros e sentem a verdade das emoções. Não há esconderijo emocional para os sentimentos dos pais. O bebé sabe se os seus pais gostam ou não dele. E sabe-o desde a mais tenra idade, acumulando experiência através do modo de lhe pegam, tocam, embalam, falam, cuidam, alimentam e brincam.

Não há nenhum mistério aqui: o bebé sabe a verdade, porque ao nível do não-verbal – que é o meio comunicacional privilegiado para o bebé – não conseguimos mentir/disfarçar os nossos sentimentos. Somos traídos pelo não-verbal, como tão bem chamou a atenção Freud.

Trata-se, pois, de um vivido essencialmente emocional, no sentido de não ter de ser verbalizado de forma directa pelos pais, mas cuja autenticidade radica na comunicação intersubjectiva. “Eu sinto que os meus pais não apostam muito em mim com futuro homem. Não acham que eu perceba de política, não me vêm como capaz de ganhar a vida por mim mesmo, sem a ajuda deles. E sinto isso de formas tão subtis como na maneira como falam comigo e como falam com amigos meus, como enaltecem as capacidades dos meus pares. Eu fico na sombra”.

Por isto, a depressão não é um luto. Não se trata da dor da perda de alguém significativo. O que predomina é a ausência ou pouca força ou a perda do investimento amoroso da(s) figura(s) significativa(s), de forma autêntica e persistente. Sublinho perda do investimento amoroso, e não perda do amor, porque os pacientes que estão deprimidos não têm dúvida do amor dos seus pais. O seu drama é sentir que, embora o amando, os seus pais não investiram nele. É isso que causa a depressão, a retirada do valor próprio. “Os meus pais não me sentiram com valor. Não acreditaram nem apostaram no meu valor. Não investiram tempo e capacidade emocional a tentar conhecer-me e ajudar-me. Fá-lo-iam se eu tivesse valor. Não o fazem porque sentem que não vale a pena investir me mim”.

O sintoma que mais caracteriza a depressão é a desvalorização. Desvalorização do próprio em relação a si mesmo, decorrente da desvalorização que sentiu das suas figuras significativas em relação a si mesmo. Não existe depressão sem essa desvalorização das figuras significativas, consciente ou inconsciente. “No meu caso, eu estava mais atenta à questão do abandono, porque era talvez o que me lembrava melhor e o que, na minha história, aparecia de forma mais consciente e evidente: a ida da mãe para o estrangeiro aquando dos meus 2 anos e meio em busca de viver uma paixão, logo após o divórcio com o meu pai. Percebo que o abandono faz parte intrínseca da minha história, das minhas vísceras, e que deixou uma vulnerabilidade onde se vai instalar de forma tão forte os aspectos depressivantes que vivi na relação com os meus pais: o facto de ter sentido, em ambos, palavras e comportamentos que me fizeram não sentir valorizada. Viam-me como uma menina (não como um projecto de mulher), como dependente deles… E veja que este olhar desvalorizador vai desde coisas tão pequenas como a culinária… e a coisas tão grandes como o nunca dizerem que eu era bonita”.

O paciente sente-se desinvestido pelos pais, sentindo que estes dão mais importância às suas limitações, defeitos, incapacidades, insuficiências do que às suas capacidades e talentos. Por isso, a arte na terapia é recuperar o olhar do paciente sobre os seus talentos… Reconhecendo-os e expandindo-os. Insuficiências todos temos, mas podem cair da ribalta por falta de luz sobre eles, como diria Coimbra de Matos.

26/01/2016

Amar

Amar

Publicado originalmente com o título "O amor do outro como trampolim" no Jornal Público, em Dezembro de 2014

Catarina Rodrigues
Psicoterapeuta

“Foi muito importante para mim poder exprimir o ódio e a descrença que sentia, mesmo em relação à terapia e a si. Senti que você aceitou esta expressão e, ao invés de se assustar e se sentir muito posta em causa, como acontecia com a minha mãe, ou não saber o que fazer comigo e achar que eu estava a exagerar, como aconteceu com o meu pai, você aceitou esse ódio como uma parte natural do meu percurso pessoal. Eu preciso odiar. Preciso queixar-me de tudo e de todos… para depois renascer eu. Só espero consegui-lo. O meu medo é ficar encerrada neste ódio para sempre. Ou ficar sempre a viver nesta oscilação emocional, que me esgota e me faz concretizar menos do que eu queria e tenho capacidade.
“Eu percebo que, para sair daqui onde estou, preciso perceber intimamente que a minha vida só depende de mim, da minha apreciação de mim e da minha energia para concretizar os meus projectos. Mas, para isso, eu preciso tolerar os meus fracassos, as minhas angústias e não me deixar abater por eles e vê-los como a totalidade de mim. São uma parte de mim e são também uma parte dos outros. São uma fase, um momento. E a raiva e o ódio são a expressão no limite da frustração que tais situações me provocam. É essa frustração que não posso deixar que me bloqueie e tome conta de mim. Por isso pensei: e se eu, ao invés de fazer braço de ferro ou me isolar em relação ao meu marido, ou aos meus filhos, ou aos meus pais, ou aos meus amigos, quando as coisas correm mal, diferente do que eu desejava, e se eu, logo que as minhas emoções me deixarem, estabelecesse uma ponte afectiva para eles? Isto é, comunicasse com eles sobre os meus sentimentos, mas sem rancor, sem amuo. Não estou com isto a dizer que não vou viver a raiva e a frustração. São naturais. Assim como o é a frustração dos nossos desejos e vontades. Mas de que vale manter-me amuada à espera que venham dar-me mimo, soluções para a minha vida ou dizer que eu tenho muita razão? Provavelmente não tenho e estou a reagir sem maturidade. Fazer as pazes, sair do encerramento em mim própria e criar pontes para chegar aos outros é fundamental.
“Ninguém tem a razão total. Eu tenho-me alimentado de ressentimento e desejos de abandono e rejeição. O que só tem feito com que me sinta cada vez mais afastada e sem tolerância para quem me rodeia. Essas pessoas não têm o direito de errar, de frustrar-me, pergunto eu? E face a isso amuo ou transformo e reivindico? Eu sei que é mais fácil falar do que fazer, mas alimentar este ressentimento e ilusão de que só noutra relação serei verdadeiramente feliz não me tem levado a lado nenhum.
“Na relação que os meus pais tiveram comigo, não me souberam ajudar a construir instrumentos nem a sentir-me competente para gerir dentro de mim os sentimentos de raiva e frustração. E eles tornaram-se tremendamente poderosos. Mas eu também não consegui aproveitar outras relações para esta aprendizagem. Continuei à espera dessa aprendizagem e dessa conquista na relação com os meus pais. Mas agora, isso tem menos importância. Terei de fazer esse caminho por mim própria. E através de outras relações. Descobrir o que eu acho ser o melhor para mim e não perder tanto tempo a queixar-me/ficar ressentida com a falha do cuidado do outro. Se o outro cuidou mal de mim, cabe-me dizer-lho e, e sobretudo, cuidar eu de mim. Amar-me e talvez assim amar mais os outros… E, porque amor gera amor, ser assim também melhor amada pelos outros.”
Não é fácil sair da espiral de ressentimento, ódio e encerramento em si mesmo. Cada um tem o seu ritmo. Uma relação de amor, terapêutica e/ou outra, ajuda, mas não cura só pelo facto de existir. O amor do outro funciona como base e trampolim. Funciona como um acolhimento seguro face às tempestades internas de cada um. É essencial, sem dúvida, mas, em meu entender, o que verdadeiramente é transformador é o percurso do próprio no sentido de se amar e assumir a inevitabilidade de ser o agente da sua vida.

Não consigo sair daqui

Não consigo sair daqui!

Publicado originalmente no Jornal Público, em Dezembro de 2014

Catarina Rodrigues
Psicoterapeuta


Apresento hoje o primeiro de dois artigos que, através de um relato imaginário de uma paciente numa sessão, pretendem ilustrar as questões do ódio e da dependência e a possibilidade de amar e conquistar a capacidade de ser-se agente da sua própria vida.
“Não consigo sair daqui. Não consigo deixar de ser quem sou, agir deste modo estúpido e amuado, rancoroso e exigente. Penso que já estou melhor e volto ao mesmo. Uma contrariedade, um sentimento de não ser ajudada, de não pensarem em mim, de não estarem comigo, de não me respeitarem, de não me ligarem, de não me darem atenção… no fundo, de não me sentir amada pelas pessoas que me são significativas. Sim, é isso, eu não consigo controlar este sentimento de não me sentir amada cada vez que acontece algo que sai fora do que estou à espera. Algo que me faz sentir rejeitada, excluída, fora da atenção do outro, fora do cuidado do outro ou incompetente. Eu não consigo controlar o meu rancor, o meu ressentimento, a minha angústia. Mesmo que a razão me diga que estou a exagerar, que não é preciso dar toda aquela dimensão, que tudo se resolvia se eu conseguisse desdramatizar e reivindicar sem estes sentimentos de ressentimento e de amuo. Nem imagina como me fico a sentir humilhada e infantilizada. E face a isso, só posso continuar com o amuo, com o mal-humor, com as queixas e as acusações, de maneira a ver se o outro me pede desculpa e eu volto a sentir algum amor próprio. Entende? Se o outro não me dá razão, a parte de mim que acha que eu estou a ser uma infantil, uma palerma apodera-se de mim toda… e eu sinto-me um lixo e acho que não valho nada e que nunca vou conseguir ser feliz e fazer os outros à minha volta felizes. E fico a odiar essa pessoa. Só me apetece é abandoná-la, magoá-la… agarrando-me à ideia, que não sei se é ilusão ou não, de que sem ela eu seria mais feliz e poderia encontrar alguém que me compreendesse melhor e me fizesse sentir melhor.
“Mas penso agora que talvez o problema seja também meu. Que a insatisfação e a humilhação residam em mim… e sejam reactivadas na relação com os outros. Penso no meu passado e vejo que fui assim sempre… com todos… e aprendi a sê-lo tão cedo quanto na minha infância, com a minha mãe e o meu pai, onde me sentia excluída, com falta de atenção e sozinha com as minhas emoções. Eu era assim com pais, amigos e namorados. Eu sou assim. Não consigo deixar de ser assim… e não creio que a psicoterapia me possa ajudar. Deixei de acreditar. De que me serve pensar nisto? Eu não consigo sair de dentro de mim. Eu não consigo deixar de ser quem sou… e isso faz-me sentir humilhada, esmagada, infeliz e com raiva e ódio de todos. Até de si, que não me pode ajudar. Mas sobretudo de mim. Ódio de mim, pois percebo que era só levar as coisas menos a sério, relacionar-me com mais as pessoas, não ficar rancorosa, não ser tão crítica de mim e dos outros, abraçar outros projectos. Relativizar. Amar.”
Mas como amar quando se sente tanto ódio, tanta humilhação?
Quando existe uma boa relação, terapêutica e/ou outra, persiste o amor e a paciência. Em tais relações de amor, aceita-se o ódio, mas coloca-se limites à agressividade, sem retaliar no amor, o que ajuda a tomar consciência, a diminuir a culpa e a super-exigência internas.
Há marcas das relações precoces significativas que são lentas a desfazer. A relação terapêutica permite a expressão e a vivência de afectos tão fortes quanto o ódio e a desesperança, sem retaliação, sem perda de afecto e mantendo a esperança. O amor do terapeuta pelo seu paciente, pelo novo estilo relacional que estabelece, actua como um contrapeso ao ódio e à destruição internas. Só o amor permite criar sentido na vida. Alimenta o sonho-projecto. Mantém vivas as partes do paciente que são positivas e lança iluminação sobre novos caminhos. Mantém viva a ideia de que é possível a concretização pessoal e a construção de um projecto de vida que o próprio ame. 

Só a Psicanálise não chega

Só a Psicanálise não chega


Publicado originalmente no Jornal Público em Novembro de 2014

Catarina Rodrigues
Psicoterapeuta

O impacto do estilo relacional parental na construção da identidade e personalidade dos filhos pode constituir-se como uma marca de um passado irrelembrável, no sentido de não consciente porque não pensável ou elaborável pela mente imatura do bebé. Porém, é indesmentível e inesquecível, matriz do estilo relacional (próximo, seguro, espontâneo, livre, confiante, amante… ou o contrário) que os filhos estabelecem (em resposta) com os seus pais… e depois com o mundo que os rodeia.
Tal irrelembrável e inesquecível (como tão bem o caracterizou Miguel Mealha Estrada) perturba a vida do sujeito, limitando a liberdade, a espontaneidade e a iniciativa. Interfere com a capacidade de ser de forma confiante, audaz e sonhadora na vida. Medos, angústias, desesperança não encontram transformação criativa e resiliente.
A Psicanálise, se proporcionando um estilo relacional complementar, concorre para uma expansão do “eu”. A análise de si mesmo e da sua história como foi vivida emocionalmente pelo próprio possibilita a tomada de consciência do desenvolvimento que ficou em suspenso e compreender a raiz da fragilidade, do medo, da dependência e da imaturidade.
Cabe ao analista ajudar a re-situar a pessoa na sua vida, trabalhando em “dupla hélice - repetição e inovação, transferência e nova relação”, segundo Coimbra de Matos, que acrescenta: “A primeira desenvolve-se em espiral redutora, reforçando a adaptação patológica – é iatrogénica; a segunda, em espiral expansiva – e é terapêutica. A primeira interpreta-se para a dissolver – análise da transferência; a segunda gere-se para a expandir e generalizar – desenvolvimento e transferência da nova relação”.
Em meu entender, tal expansão e generalização são possíveis porque a pessoa reconhece o entusiasmo e a confiança do analista pela sua vida (e pela vida em geral). Veiculado de forma clara e genuína, este entusiasmo resgata o sujeito da sua solidão e dos seus medos, incentivando-o a ir além da sua zona de (des)conforto e reconquistar o seu lugar na vida. Psicanálise relacional, talvez ainda a caminho de ser verdadeiramente relacional, onde a certeza do interesse e do entusiasmo do analista pela pessoa é o principal factor de saúde, colmatando a falha inicial.
Porém, a retoma do desenvolvimento não se processa se encerrada na relação psicanalítica. Só a psicanálise não chega. A psicanálise lança as bases da compreensão do próprio e do meio relacional que o rodeia para que a transformação possa ocorrer. A transformação ocorre na vida, no vivido emocional na relação com os outros que se vão tornando significativos. É necessário que exista uma boa aliança entre o impulso para o exterior motivado pelo analista e a coragem do analisando para se colocar em movimento na vida.
Quando tal sucede, o sujeito sente-se mais capaz para se assumir como responsável pela sua vida. É reconhecido e reconhece-se como suficientemente competente para criar e escolher os caminhos que intui serem os melhores para si, aqueles que vão ao encontro da sua realização pessoal. Compreende que permanecer dependente da energia, do interesse e das capacidades de um outro (mesmo que esse outro seja o analista), é persistir num estilo relacional assente na dependência e na desvalorização/inferiorização de si mesmo. Elegendo-se a si mesmo como responsável pela sua vida, caminha para além da precoce necessidade parental insatisfeita.
Neste caminho, há sucessos e fracassos. Não há outra forma de aprender. Tem de estar preparado para as investidas da culpa, da desvalorização e da crítica… sobretudo internas. Mas se a esperança em si o nortear… permanece em movimento na sua vida! Porque a vida, como diz Coimbra de Matos, “é, essencialmente, construção de novidade (…); é, sobretudo, desenvolvimento pessoal e social – este desígnio é o que verdadeiramente motiva o Homem; sem ele, não há vida afectiva, esperança, alegria e felicidade – só passagem do tempo”.

Ajudar no Isolamento Infantil

Ajudar no Isolamento Infantil

Publicado originalmente no Jornal Público

Catarina Rodrigues
Catarina.nasc.rodrigues@gmail.com

Em primeiro lugar, analise se os comportamentos de isolamento do seu filho são recentes e circunstanciais (relacionando-se com um acontecimento identificável) ou se se confundem com a personalidade e história de vida do seu filho (ele sempre mostrou uma tendência para se isolar e se fechar e dificuldade em gerir as frustrações).
Em segundo lugar, faça uma análise sincera e veja como as dificuldades do seu filho se inserem na dinâmica da família. Estará a acontecer alguma coisa na família que possa ser confuso, angustiante ou difícil de gerir para o seu filho? Divórcio dos pais, desemprego, morte, doença grave, conflito entre os pais, conflito pais-filho, conflitos na escola, entre outros. E tal situação é recente ou já sucede há muito tempo? E como é que a gerem com o vosso filho? E entre vocês?
Em terceiro lugar, analise a sua personalidade e as suas próprias dificuldades sociais. É provável que encontre um fio condutor com a personalidade do seu filho.
Se não se sentir capaz de abordar ou de encontrar soluções que auxiliem o seu filho, porque são questões com que também se debateu e que ainda o marcam, ou porque os comportamentos de isolamento e retraimento do seu filho o irritam ou dececionam, lembre-se que pode sempre procurar ajuda no exterior, seja num psicólogo seja num amigo próximo que possa ter uma visão e uma experiência de vida diferentes das suas. O interesse de alguém de fora, com uma ligação emocional significativa e a quem a criança reconhece competências que não reconhece nos pais, pode fazer a diferença. Muitas vezes, há professores ou amigos que, detetando que algo não está bem, procuram ajudar. Espontaneamente, vão atrás da criança, não a deixam isolar-se e convidam-na para situações de integração social. Com carinho e mantendo-se na retaguarda enquanto a criança desta precisa.
E esta é, quanto a mim, a melhor estratégia: não compactuar com a tendência ao isolamento, nem arranjar quaisquer justificações para ela (seja na personalidade, seja nas vivências da criança). Isolar-se de forma constante e persistente, evitando o contato social, não é um comportamento normal. Ponto final. E a melhor ajuda que podemos dar é fazer a criança a sentir-se integrada/amada, competente/interessante. Estas crianças querem ser resgatadas do seu isolamento. Não o procuram por prazer, mas devido ao seu sofrimento. O isolamento traduz o facto de terem chegado a um beco sem saída.
Fale com carinho e sem culpa com o seu filho sobre esta sua tendência e procure ver como é que ele a entende dentro de si mesmo. E depois, faça-lhe ver que o isolamento nada resolve, até agrava o sentimento interior de mal-estar, como ele próprio o sabe. E incentive-o a procurar amigos com que goste de conversar e de brincar e a integrar-se nas brincadeiras, mesmo que sinta que as coisas não correm bem de início. Todos temos o nosso ritmo e o mais natural é que, se não desistirmos, a sintonia emerja.
E em quaisquer situações em que esteja com o seu filho, não feche os olhos quando repara que ele se está a isolar. Ajude-o a integrar-se, mas sem grande alarido. Aproveite a oportunidade para conversar com ele, por exemplo sobre algo que ele gosta de falar ou sobre alguma situação divertida porque passaram ou que estão a ver. Falar sobre as dificuldades dele pode ser contraproducente. É mais importante focar algo de que ele goste e que sirva de desbloqueador do retraimento. Em situação social, incentive a conversa ou brincadeira com as pessoas de quem ele gosta. E gradualmente vá deixando de participar na conversa ou na brincadeira, à medida que o vê mais à-vontade. Demonstre o seu orgulho nos seus progressos. A confirmação e o estímulo ao desenvolvimento de novas competências, associada ao reconhecimento, ao entusiasmo e à crença inequívoca da capacidade do seu filho em transformar a situação, são o primeiro passo para a refundação de um novo estilo relacional assente na confiança.